Ela desafiou doença, criou a Abrale e ajuda milhares de pessoas com câncer
"Trabalhar com gente doente? Ah, não! Quem vai querer ajudar quem está doente, pra morrer?" Essa foi a resposta que Merula Steagall ouviu de alunos que cursavam pós-graduação em gestão do terceiro setor em uma das mais conceituadas instituições de ensino do país, ao buscar um profissional para assumir a presidência da Abrale, em 2002.
A administradora ocupava temporariamente o cargo na Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), que acabara de fundar, mas, comprometida com sua própria empresa e à frente também da Associação Brasileira de Talassemia (Abrasta), precisava de alguém que liderasse o novo projeto.
Depois de várias tentativas frustradas, a solução veio do professor do curso: "Melhor buscar um CEO para sua empresa e você mesma tocar a Abrale, porque você vibra quando fala disso - e não estamos mesmo conseguindo convencer ninguém".
"Não vai passar dos cinco anos"
Portadora do tipo mais severo de talassemia, uma espécie de anemia crônica hereditária, Merula desde muito cedo enfrentou o mesmo preconceito dos alunos que recusaram o cargo na associação: aos três anos de idade foi desacreditada pelos médicos, que disseram que não viveria além dos cinco anos.
Desafiando todos os prognósticos, e em grande parte graças à obsessão de seu pai, que sempre buscou as últimas novidades científicas para combater a doença e a inspirou a viver intensamente, Merula hoje tem 53 anos.
O pesado tratamento que recebe desde pequena, que inclui injeções diárias e transfusões periódicas de sangue (atualmente, ela recebe sangue duas vezes por semana), não a impediram de construir uma família, uma carreira de sucesso e ajudar muita gente.
Os primeiros passos
Quase 20 atrás, em 2000, Merula recebeu uma ligação da Abrasta informando que a entidade, da qual era associada em função de sua patologia, seria fechada. Ao entender que o problema era uma dívida de R$ 5 mil, se comprometeu em conseguir o dinheiro e acabou assumindo a presidência para garantir a continuidade do trabalho.
A partir dali, tudo mudou. O que antes era apenas uma associação de apoio aos pacientes, se tornou também um centro de informações e uma ferramenta efetiva para a mudança de políticas públicas. E foi justamente em função dessa atuação junto ao governo e órgãos públicos que surgiu também a Abrale. Poucas semanas depois de assumir a Abrasta, Merula foi atrás do então Ministro da Saúde, José Serra.
Mesmo sem conseguir marcar uma reunião presencial, foi a Brasília e acabou realizando o encontro. "Faltava alguém para levantar a bandeira, para ir lá discutir o que precisava ser feito para os pacientes de talassemia. E ele me ouviu". Depois, segundo conta Merula, foi o próprio José Serra quem sugeriu que ela expandisse a atuação, oferecendo orientação sobre outras doenças.
Ao criar a Abrale, Merula, que também passou pela experiência pessoal de ter um filho enfrentando - e vencendo - um câncer, queria fortalecer politicamente as demandas dos pacientes com doenças do sangue, como a talassemia, o linfoma e a leucemia. Sem conseguir quem assumisse a liderança da entidade, e com real vontade de fazer a diferença, acabou acumulando a função, que exerce até hoje, 17 anos depois.
Muito mais que apoio ao paciente
Assim como a Abrasta, a Abrale se orgulha de ser muito mais do que uma associação de apoio ao paciente e trabalha para mudar de forma ampla e duradoura o acesso ao tratamento e diagnóstico precoce das doenças do sangue.
Para isso, atua também na informação e conscientização de pacientes, familiares e profissionais de saúde, na pesquisa e monitoramento de dados, e advogando por políticas públicas junto aos órgãos responsáveis. O apoio ao paciente completa os quatro pilares da entidade. Com apoio jurídico, psicológico e nutricional, entre outros, a Abrale ajudou, de forma totalmente gratuita, milhares de pessoas desde sua criação - hoje, são mais de 34 mil pacientes cadastrados.
Entre as muitas vitórias no período, Merula destaca a estruturação da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer, em 2013. Além disso, a participação ativa da entidade fez com que planos de saúde passassem a cobrir, desde 2006, transplante de medula óssea.
"Depois, pagavam o transplante, mas não os exames de monitoramento e remédios para conter a infecção. Fomos mostrando a necessidade e isso foi sendo incorporado, se tornando obrigatório", conta.
Outra conquista foi o pagamento pelos planos de saúde da quimioterapia oral. Quando surgiu essa opção, os planos cobriam somente o tratamento feito por soro nas instituições. "Com nossa mobilização, conseguimos sensibilizar, e os planos passaram a pagar também pelo tratamento oral, feito em casa", explica.
Como ajudar a Abrale Você pode fazer uma doação pelo site da Abrale ou ligar para (11) 3149-5190. É possível ainda ajudar com doação de cabelo, compra de produtos on-line e apoio aos estudos de pacientes
Para ser voluntário A associação também aceita trabalho voluntário, após uma triagem. Para participar, envie e-mail para abrale@abrale.org.br
Histórias cruzadas
Tentar separar a história de Merula da história da Abrale é um esforço infrutífero. Assim como seu conhecimento íntimo das doenças do sangue a levou a fundar a associação, seu perfil profissional, de empresária com urgência e garra para realizar todos os projetos, foi a base para que a Abrale se estruturasse, crescesse e alcançasse a importância que tem hoje.
Durante as viagens internacionais a trabalho que fazia pela empresa que tinha, Merula sempre dava um jeito de visitar associações, governos, universidades, em busca de informação e de modelos que pudessem ser replicados no Brasil. Muitos projetos tiveram inspiração de fora - desde modelos estatísticos até tratamentos.
Hoje, a entidade, mantida com o apoio de parceiros e doadores, avançou tanto, que exporta exemplos. Projetos como o Observatório de Oncologia, uma plataforma online de monitoramento de dados, o Projeto Dodói, em parceria com o Instituto Maurício de Souza, que ajuda crianças com câncer, e o Movimento Todos Juntos Contra o Câncer, por exemplo, são copiados pelo mundo.
Inspiração
A força e determinação de Merula inspiram também pacientes, voluntários e funcionários da associação. O engenheiro florestal Glauco Lima da Silveira, de 43 anos, é um exemplo do impacto dessa inspiração. Glauco recebeu o diagnóstico de câncer em 2015, no auge de sua carreira nacional e internacional.
Ele, que então morava na Bahia, decidiu voltar para o Espírito Santo, para lá fazer o tratamento perto de sua família. Sem conseguir bons resultados, depois de alguns meses foi para São Paulo em busca do que havia de mais avançado para lutar contra o linfoma. Foi sua médica quem o apresentou a Merula. "Ela fazia um trabalho incrível, depois de conhecê-la, me envolvi profundamente com os congressos, estudos, com a associação. Primeiro me tornei voluntário e hoje trabalho na área de parcerias estratégicas da Abrale", conta.
Quando conheceu a Abrale, o engenheiro já havia passado por muitas etapas de tratamento, enfrentado momentos difíceis e falta de informação. "Meu caminho foi um pouco diferente. Apesar de ser um paciente, eu enfrentei o tratamento, busquei o que havia de melhor no mundo, e depois conheci a Abrale", diz.
Glauco se orgulha muito de poder ajudar outros pacientes. Para ele, o grande diferencial para o sucesso do tratamento é a informação. É ela que possibilita o diagnóstico precoce, que permite acesso ao que há de mais avançado na ciência, que mune o paciente de ferramentas para exigir seus direitos, que abre caminhos para políticas públicas de saúde efetiva. "Existem 20 milhões de pessoas com câncer avançado no mundo hoje e 10 milhões dessas pessoas vão morrer. Eu fui uma dessas pessoas que não morreu", diz.
Hoje curado, Glauco conta que o caminho não foi fácil e que chegou a passar cerca de oito meses em uma cama no hospital: "Foi um tratamento muito pesado, com os médicos não sabendo muito o que era para fazer, quais eram as outras opções. Mas eu tive essa oportunidade, eu busquei informação, encarei a briga com essa doença, tive acesso ao melhor tratamento. Muitas pessoas não estão preparadas para encarar isso, então, se elas tiverem uma instituição que dá esse suporte, que tem informação, que tem pessoas que passaram por isso, faz muita diferença. Ajuda a mitigar, desviar caminhos e não necessariamente passar por todo o sofrimento, como eu passei", diz.
"A Abrale me ajudou a ajudar outras pessoas. E, se você pensar bem, ela me ajudou muito mais que isso. A discriminação do paciente oncológico é um tema ainda muito relevante. Se você souber a dificuldade que é voltar para o mercado de trabalho... E hoje eu tenho um trabalho bonito, que eu faço de coração e que faz diferença", completa.
Mais sobre a Abrale
A Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia é uma das mais conceituadas e importantes associações que trabalham em todo o país para democratizar o tratamento e qualidade de vida de pessoas com câncer de sangue e outras doenças hematológicas (linfoma, leucemia, mieloma múltiplo, mielodisplasia, PTI, mieloproliferativas).
Desde 2002, a Abrale já ajudou cerca de 500 mil pacientes e familiares, considerando, além do atendimento, campanhas, materiais informativos e trabalho de políticas públicas. No momento, a associação presta auxílio a 34 mil pessoas. Todo o atendimento é gratuito.
A Abrale é mantida com o apoio de parceiros e doações. Detalhes de como ajudar: http://abrale.org.br/como-ajudar
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