A livraria que faz sucesso promovendo eventos sobre a história negra
Localizada em uma casinha na Rua Rocha, 259, no bairro paulistano do Bixiga, a Livraria Simples vai além de um comércio promissor e rentável. Seus donos, a dupla Felipe Faya, 32, e Adalberto Ribeiro, o Beto, 38, têm trabalhado para fazer do endereço - onde também funciona uma tabacaria e o acervo do artista plástico Otávio Roth (1952-1993) - um ambiente que extrapola esse sentido. Ali as histórias não são apenas vendidas. Elas são contadas e recontadas.
Todo último sábado do mês, ocorre na livraria o "Negros do Bixiga", evento que tem o objetivo de contar histórias dos negros que vivem e viveram na região. Embora o bairro seja lembrado principalmente pela imigração italiana, no início do século passado ele foi ocupado também por uma numerosa comunidade de descendentes de africanos. O endereço onde hoje está a sede da escola de samba Vai-Vai, por exemplo, já abrigou um quilombo urbano.
E essa memória do bairro tem sido relembrada por meio de histórias orais compartilhadas pela comunidade no andar de cima da Simples. A cada encontro, uma pessoa diferente é convidada a falar. "Tem uma força ancestral no ato de reunir os iguais", disse o publicitário Tim Ernani, 43, que conduziu a conversa de agosto último. "A identidade é um processo que ocorre em coletivo e isso é especialmente importante para a comunidade negra."
Contato com moradores
O "Negros do Bixiga" é uma das atividades da programação da loja que, além de vender "livros impossíveis" (novos ou usados), como seu slogan promete, tem como objetivo aproximar os moradores da literatura e das histórias.
No dia 26 de agosto, enquanto quinze pessoas ouviam Tim falar, um vai e vem de clientes-leitores e meia dúzia de curiosos por lombadas de livros circulava pelos corredores da casa no andar de baixo.
É que, todos os sábados, ocorrem ali outras duas ações: uma feira de troca, cujos exemplares ficam disponíveis em uma bancada na calçada, acessíveis a qualquer pessoa; e outra de livros pela metade do preço. São mais de 600 títulos em promoção.
"A gente tenta não ignorar o fato de que vivemos em sociedade e de que essas histórias são importantes", afirma Faya. "Com o tempo, entendemos que a livraria precisava ter uma relação mais íntima com a rua, com o bairro, com a cidade. E isso tem funcionado."
Livros para todos
Desde que abriram o negócio, os sócios tinham clareza de que ele deveria estar aliado a um objetivo maior, de oferecer algo para a comunidade. "Achávamos que o ideal seria atuar junto com a vizinhança e promover ações que contribuíssem com o bairro", diz. A ideia era incentivar o hábito da leitura, promover acesso fácil aos livros e fazê-los chegar, de maneira simples, a quem normalmente não chega.
No início, porém, o funcionamento era bem diferente. O acervo (cerca de 700 livros) era vendido majoritariamente pela internet. Isso porque, durante dois anos, a loja funcionou na Mooca, em "uma rua sem saída", por onde quase não passava ninguém. "Foi só com a mudança para o Bixiga que conseguimos concretizar o plano original", diz Faya.
A partir daí, cenas como o entra e sai da dona Geralda Leão, 77, vizinha da Simples, se tornaram corriqueiras. "Quando volto do mercadinho aqui ao lado, sempre passo na livraria", diz ela, que costuma estar acompanhada do neto João, 5. "Ele não sossega enquanto não cumprimentar todo mundo."
Depois de dar "oi", o menino passeia pelos livros, às vezes abre um, conversa com a clientela, dá uma espiadinha no gato Damião, que vive na loja, e outra no jardim, onde há algumas plantinhas doadas pela avó aos livreiros.
No sábado em que Tim comandou o Negros do Bixiga, João era um dos 15 ouvintes. Apesar da pouca idade, prestou muita atenção ao que ali ouviu. Antes de ir embora, contou animado a uma senhora que acabara de conhecer: "Você tinha que ver. Ele contou a história sem ler nada!".
Bate-papo na cozinha
Além dos eventos, a Simples investe em um atendimento caloroso, com jeitão de cozinha de amigo. Na copa, tem sempre café coado na garrafa térmica e alguém disposto a trocar uma prosa, em pé, ombros apoiados na parede ou nas estantes de livros.
Outro cuidado está nas embalagens, as vedetes dos posts no perfil da loja no Instagram, que tem mais de 30 mil seguidores. Os pacotes são feitos um a um e decorados com carimbos e mensagens personalizadas.
A equipe é formada por outras quatro pessoas além da dupla de sócios. Entre eles está Gambis Moya, 37, venezuelano que, no primeiro semestre deste ano, veio para o Brasil com a família (mulher e filhos) em busca de refúgio. "Nós sempre tivemos vontade de contratar imigrantes, mas nos faltava musculatura financeira para isso; o que só foi possível este ano", conta Beto.
Os sócios chegaram a Gambis por meio de um programa de mediação de trabalho realizado pela Missão Paz, instituição filantrópica de apoio e acolhimento a imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo.
Uma história diferente
A Simples anda no sentido contrário ao da crise no mercado editorial: é superavitária e está em crescimento. Em agosto deste ano, o negócio registrou um aumento de 105% nas vendas, em relação ao mesmo período do ano passado. Foram comercializadas 2.096 obras ante 1.017 no ano anterior.
Desde 2014, as livrarias vêm experimentando um cenário de recessão cada vez mais acentuado. Há pouco menos de um ano, duas das maiores e mais famosas redes varejistas de livros no Brasil, a Saraiva e a Cultura, entraram com pedido de recuperação judicial. Dezenas lojas foram fechadas.
Segundo o Painel do Varejo de Livros no Brasil, nos oito primeiros meses de 2019 houve queda de 11,51% no volume de exemplares vendidos e 11,35% no faturamento. No mesmo período, o mercado deixou de produzir mais de 3 milhões de exemplares em relação a 2018. A pesquisa foi realizada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e pela Nielsen Bookscan.
De acordo com Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), esse cenário é resultado de uma série de fatores, sobretudo a recessão do país somada ao crescimento das compras pela internet. "As empresas tiveram que se adaptar às mudanças", comenta.
Para ele, enquanto na década de 1980 as livrarias migraram das ruas para os shoppings, hoje o caminho é contrário. "Nesse contexto, as livrarias de bairro, que conseguem oferecer serviços mais eficientes e personalizados, têm sido valorizadas."
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