Projeto estimula autonomia da mulher periférica com oficinas e acolhimento
No Capão Redondo, periferia da zona sul de São Paulo, o portão azul do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP) fica aberto a maior parte do tempo. É por ali que as educandas do projeto Casa LAB - Laboratório de Fazeres da Mulher Periférica - chegam para a oficina gratuita de marcenaria.
"Nem a minha unha eu consigo lixar e pintar, tenho que ir ao salão pra fazer isso... Imagina então cortar madeira, lixar, furar e montar uma bancada? Nunca pensei que fosse conseguir", conta Alessia da Silva Castro, 56 anos, aluna do projeto.
Ela, que trabalha como enfermeira em um ambulatório em Taboão da Serra (SP), descobriu inúmeras habilidades durante as oficinas do Casa LAB, a ponto de desejar refazer uma reforma executada meses atrás em sua casa.
"Se fosse hoje, faria tudo diferente. É um muito ruim ter que ficar sob a orientação de outra pessoa e depender do outro para consertar qualquer coisa em sua própria casa. Na época, não conseguia me expressar, não entendia nada de marcenaria", relembra Alessia, que optou por um móvel de alvenaria fixa no quarto do filho e se arrepende.
"Hoje tenho conhecimento sobre diversos tipos de madeira, certeza que faria tudo diferente. Com um acabamento muito mais bonito", completa.
Lugar de acolhimento
Toda essa segurança de Alessia tem a ver não apenas com os aprendizados sobre marcenaria, mas também com o fortalecimento da autoestima e autoconfiança. Isso porque O Casa Lab tem uma proposta que vai além de ensinar uma atividade: a ideia é acolher as mulheres, oferecendo um espaço para compartilhar sentimentos.
Antes de colocar luvas e se apropriar de furadeiras, martelos, serrotes e tico-ticos, o grupo, formado por 20 moradoras dos distritos do Campo Limpo, Jardim São Luís e Jardim Ângela, se prepara para o "check-in", conversa em círculo em que todas se olham, se escutam e se acolhem.
As mulheres contam como estão se sentindo, como foram os seus dias e falam inclusive sobre suas angústias. É desse acolhimento, e do sentimento que expõem, que nascem vínculos e possíveis demandas para se trabalhar.
"Quantos espaços, fora do ambiente doméstico, a mulher tem para ser ouvida? Aqui, todas são da periferia, circulam pelos mesmos lugares e isso já faz com que a nossa troca seja ainda mais produtiva", conta a arquiteta e urbanista Ana Cristina Morais.
Nascida no Capão e formada pela FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), Ana é articuladora e monitora do projeto, idealizado por Silene Monteiro, coordenadora do CDHEP. A ONG atua há 36 anos em defesa dos Direitos Humanos e no combate às diversas formas de violência nas periferias.
Ao lado de Ana Cristina está a educadora e designer de produtos e percursos Fernanda Tosta, que coordena a oficina de marcenaria. É ela quem inicia a conversa pedindo para que cada uma destaque o que aconteceu de positivo em sua vida no último final de semana e conte como estava se sentindo, ali, naquele momento.
Filhos, netos e amigos permeiam a troca de ideias. As mulheres, a mais jovem com 18 anos e a mais velha com 60, se encontram em suas falas e compartilham os momentos que passaram ao lado de quem amam.
Mão na massa
Após a troca de vivências, que acontece antes e depois de cada encontro, as educandas recolhem as cadeiras e, de maneira descontraída, formam grupos para começar a pôr a mão na massa. Muitas delas, que estavam ali após uma manhã cheia de trabalho dentro ou fora de casa, parecem se esquecer do cansaço ou mesmo dos problemas e acompanham atentas as orientações de Fernanda, que, em poder de uma serra tico-tico, explica técnicas de corte.
"Percebo que o desenvolvimento do grupo e das atividades é muito maior em oficinas que abrem, antes de tudo, um espaço para reflexão e diálogo. A autoestima se dá a partir da escuta, de se autoconhecer e perceber que você também é capaz. Na medida em que há troca de vivências e experiências, há também o entendimento das técnicas", comenta a oficineira.
Em uma atividade comumente atribuída a homens, a marcenaria explicada por uma mulher faz com que dúvidas e questionamentos sejam apontados de uma forma mais natural, sem cobranças ou olhares intimidadores. Naquele dia, as mulheres finalizavam bancadas de madeira.
Aos poucos, a primeira edição do projeto vai se tornando um lugar de troca e fortalecimento, seja para trabalhar em uma fábrica ocupada por homens ou se voltar para dentro da própria casa, onde podem não só transformar o ambiente como também lidar, de uma maneira mais firme, com uma situação adversa de violência doméstica ou qualquer atitude silenciadora.
"A partir do momento em que a mulher entende a sua capacidade, ela entende que pode não só modificar o seu espaço, como sua própria vida: 'Se posso fazer isso no Casa LAB, posso fazer isso pra mim'", acredita Fernanda.
"Independentemente de grau de escolaridade, todas têm algo a ensinar, compartilhar e aprender. Na arquitetura tradicional sempre tem alguém que vai pensar o projeto e alguém que vai executar. Aqui a proposta é juntar as duas coisas: o pensar com o fazer e trabalhar a emancipação feminina", explica Ana Cristina.
No caso de Alessia, a experiência ruim com a reforma levou a enfermeira a colocar em prática pequenos reparos domésticos. "Sabe quem trocou a torneira da pia, o chuveiro e consertou uma tomada? Euzinha! Cheguei até a comprar um kit com furadeira, serra tico-tico... Agora não tenho só batedeira, liquidificador e panela na minha casa", brinca.
Ocupando o Casa LAB
A principal ferramenta pedagógica do projeto é uma edícula - pequena casa localizada nos fundos do terreno do CDHEP -, que antes era ocupada por um caseiro e ficou sem uso após sua saída, no começo do ano. O ambiente precisava de reformas e está servindo de laboratório para a primeira edição do Casa LAB, iniciada em junho.
As educandas se inscreveram por meio das redes sociais e, depois da marcenaria, estão se concentrando em novas oficinas, de acordo com a demanda do grupo, que podem ser de elétrica, hidráulica ou reparos domésticos.
Os encontros acontecem às segundas e quintas-feiras, das 15h30 às 19h30.
A iniciativa conta com um financiador privado, o Instituto Irmãs da Santa Cruz, e conseguiu uma pequena verba para a compra de maquinário e ferramentas. "Ainda faltam muitas coisas. Por isso criamos uma campanha de doações, para que, mais pra frente, a gente consiga mobiliar a edícula e transformá-la, de fato, no laboratório da Casa LAB", finaliza Ana.
Como ajudar o Casa LAB Se você tem um eletrodoméstico, máquina de costura ou ferramenta para construção sem uso e em bom funcionamento, pode doar e também ajudar a construir o Casa LAB. Contatos: (11) 96838-4849; casalab@cdhep.org.br
Onde fica:
Casa LAB - CDHEP (Centro de Direitos Humanos e Educação Popular)
Rua Doutor Luis da Fonseca Galvão, 180
Capão Redondo - São Paulo (SP)
https://www.instagram.com/casalabmulher/
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