"Eu só queria existir": ativista Maha Mamo viveu 30 anos como apátrida
"Eu só queria existir". Foi com essa frase que Maha Mamo, 31, chamou atenção do mundo e de parte do público que participou da Virada da Virada, na Bienal, em São Paulo, no último final de semana.
Nascida no Líbano, Maha não teve a nacionalidade reconhecida. Sem certidão de nascimento ou qualquer outro documento que comprovasse sua existência, ela ficou por 30 anos apátrida, ou seja, sem pátria.
Hoje, com cidadania brasileira, Maha tenta com sua história mudar a situação de milhares pessoas que não têm nacionalidade. De acordo com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), estima-se que existam 10 milhões de apátridas pelo mundo.
Em entrevista a Ecoa, a ativista relembra as dificuldades que enfrentou ao longo dos anos, desde conseguir atendimento em hospitais, passando por tarefas simples como comprar um chip de celular, até as tentativas frustradas de cursar uma universidade. Confira a seguir:
Você nasceu no Líbano, mas não conseguiu a nacionalidade libanesa. Por que isso aconteceu?
Uma série de fatores me levaram a essa situação. Primeiro, meu pai e minha mãe são sírios. Mas o casamento deles não foi reconhecido e nem registrado na Síria, porque meu pai era cristão e minha mãe muçulmana. O casamento inter-religioso na Síria é inaceitável.
Cientes desse e de outros problemas que poderiam enfrentar, meus pais decidiram fugir e se casar. Nasci então no Líbano, onde você só é libanesa se o seu pai for libanês. Diferente de como é aqui, no Brasil: você pode ser filho de estrangeiro, mas, se nascer aqui, é brasileiro. No Líbano não acontece assim. É pelo sangue.
Em que momento a falta de nacionalidade começou a afetar sua vida?
Na infância eu não entendia nada. Era minha mãe que sofria e resolvia tudo. Ela foi de escola em escola e implorava para que eu e meus irmãos pudéssemos estudar. Foi na adolescência que percebi que algo estava muito errado.
Eu jogava basquete, era capitã do time da escola, quando dois olheiros me convidaram para jogar em uma equipe profissional. É claro que eu não consegui. Sem documento, como ia viajar, participar das competições? Foi minha primeira frustração. A primeira de muitas.
As dificuldades foram aumentando conforme os anos?
Sim, sem dúvida. Na adolescência cheguei a questionar meus pais, foi uma briga feia. O assunto era tabu, ninguém queria falar. Eles sabiam do meu sofrimento, mas não sabiam como resolver.
Eu não conseguia ser atendida em hospitais. Não tinha conta bancária. Até os cachorros dos meus amigos tinham carteirinha de vacinação. E eu? Nada. Cresci aprendendo a lidar com as frustrações e a correr atrás da maneira que podia. Sempre trabalhei muito mais, ganhando menos. Trabalhava ilegalmente. Sem qualquer vínculo registrado com a empresa.
Apesar das dificuldades, você conseguiu concluir o mestrado de administração de negócios no Líbano.
Consegui me formar do mesmo jeito que consegui frequentar a escola quando criança. Pedindo 'por favor'. Na época, minha vontade era cursar medicina, mas fui barrada. Eu entrava nas universidades e pedia para falar com o diretor, mostrava minhas notas, contava minha história, até que um dia uma universidade me aceitou e cursei sistema de gestão e informação.
Como sua situação começou a mudar?
Eu tentava ajuda em todos os países. Todos mesmo. O único que não tentei foi Israel, porque são inimigos do Líbano. Eu abria o Google, procurava contatos de embaixadas, e mandava e-mail contando minha história.
Durante 10 anos recebi muitas respostas negativas. Algumas diziam: queremos ajudar, mas onde vamos colocar seu visto se você não tem passaporte? O único país que me acolheu, de todos aos quais pedi ajuda, foi o Brasil. Mas não porque eu era apátrida, mas porque em 2014 o Brasil abriu as portas para os refugiados sírios. E foi assim que consegui chegar até aqui.
Você já falava português? Como foram os primeiros anos?
Eu não falava uma palavra em português e nunca tinha viajado de avião. Pelas redes sociais conheci uma família de Belo Horizonte que deu abrigo para mim e meus irmãos [Souad e Edward]. Eu falava quatro idiomas, mas o primeiro trabalho que consegui aqui foi de panfletagem. Para entregar papel na rua não precisa falar português.
E eu estava feliz, sabe? Foi o meu primeiro trabalho formal, como um ser humano que existe. Logo que chegamos ao Brasil, eu e meus irmãos ganhamos CPF e carteira de trabalho. Mas, ainda assim, continuávamos apátridas. Após a morte do meu irmão, esse meu desejo de lutar pelos direitos humanos e falar sobre apatridia só aumentou.
O seu irmão foi assassinado em uma tentativa de assalto em Belo Horizonte, cidade que acolheu vocês. Sua relação com o Brasil mudou depois disso?
Não, de maneira nenhuma. Eu me encontrei no Brasil. É o meu país. Quando falo do Brasil, falo com muito amor. Sei que o que passei aqui todo e qualquer brasileiro passa, de insegurança a instabilidade financeira.
Sempre falo que o Brasil deu para meu irmão a vida, porque por um ano e meio ele conseguiu viver com um documento que o representava. Um mês antes de falecer, ele foi reconhecido como refugiado. A gente conseguiu a certidão de óbito. Então, essa dignidade de ser e existir ele conseguiu aqui.
Depois desse período de dor, você e sua irmã conseguiram, enfim, a nacionalidade brasileira. Como foi esse processo?
Longo. Tive contato com muitas pessoas e fui contando minha história até chegar ao ACNUR [Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados], que batalhou junto ao governo e me ajudou nesse processo. Em 2017, a nova Lei de Imigração passou a incluir a apatridia, com a facilitação de naturalização. Isso não significa que qualquer apátrida que chegar aqui vai ter nacionalidade brasileira. É um processo, não um privilégio. É preciso cumprir alguns pré-requisitos, como morar no Brasil por dois anos, ter diploma de língua portuguesa e não ter antecedentes criminais. Eu e minha irmã passamos por tudo isso e conseguimos nossa cidadania em outubro de 2018.
Em algum momento você pensou em desistir?
Nunca. Hoje faço palestras motivacionais em corporações privadas para pagar minhas contas. Mas minha maior missão é que minha história inspire e ajude outras pessoas. Mostrar o quanto é importante acreditar e correr atrás. Viajando o mundo levo a lei que temos aqui no Brasil como o maior exemplo e sigo batalhando para que ela seja aplicada em outros países. As leis foram escritas por seres humanos, e seres humanos falham. O que precisamos fazer é consertar.
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