ONG queria libertar bolivianos, mas eles não se viam como escravos em SP
Quem vê o boliviano Nilton Vargas Aruquipa, de 35 anos, ganhando a vida longe da terra natal pode pensar que os anos de empreendedorismo dele no Brasil somam apenas sorte e muitos acertos. Dono de uma oficina de costura no bairro Bom Retiro, em São Paulo, hoje ele tem um negócio com tudo em dia — das finanças ao ambiente de trabalho.
O êxito, no entanto, foi precedido de muito aprendizado junto ao programa Tecendo Sonhos, da ONG Aliança Empreendedora. A iniciativa busca capacitar imigrantes latino-americanos que atuam na área da confecção para que eles tenham relações dignas de trabalho e possam sair da informalidade na capital paulista.
Diretora do Tecendo Sonhos, Cristina Filizzola explica que a ideia nasceu de um projeto da instituição que havia sido selecionado em um edital da Fundação Rockefeller, em 2014. Inicialmente, a meta era atuar com trabalhadores bolivianos que estavam em situação análoga à escravidão na área da moda.
"Naquela época, queríamos criar um canal de denúncias e, então, apoiar os resgatados", conta Cristina, ao lembrar que não demorou muito para que a equipe da Aliança Empreendedora tivesse de rever a proposta. Até o nome do projeto — antes, "Uma mensagem para liberdade" — teve de mudar. "Fomos conversar com os imigrantes e já percebemos que teríamos que fazer uma reformulação. Não dava para atuar como queríamos", diz.
O diagnóstico, assinala Cristina, veio diferente do esperado: mesmo trabalhando mais de 12 horas por dia, o público-alvo não se reconhecia em situação análoga à escravidão. "As condições de trabalho eram ruins, mas havia onde morar e comer. E eles achavam que escravidão era o mesmo que estar acorrentado", comenta. A saída, então, foi abandonar a ideia de criar um sistema de denúncia e desenvolver capacitações em conjunto com a rede da Aliança Empreendedora e donos de oficinas que empregam esses latino-americanos. A capacitação envolve temas como gestão, empreendedorismo, legislação trabalhista e segurança do trabalho.
"Esses proprietários eram pessoas que também trabalham muito, às vezes até em condições mais precárias que as dos costureiros. Eles costumam alugar a casa da oficina, onde todos os funcionários moram, cozinhar para eles. Muitos também são bolivianos, e as oficinas são familiares", relata a diretora do Tecendo Sonhos.
Outro ponto que levou a esse entendimento sobre a necessidade de alterar a proposta do programa foi constatar, por meio de pesquisas na área da antropologia, que esses imigrantes costumavam seguir uma dinâmica parecida após a chegada ao Brasil. Saíam ainda jovens da Bolívia e, depois de um tempo no novo país, formavam novas famílias e abriam as próprias oficinas. Esses estabelecimentos, por sua vez, atendiam marcas que pagavam valores abaixo dos praticados pelo mercado, entrando em um ciclo de exploração na cadeia produtiva da moda.
Diante desse cenário, veio então a mudança de direcionamento dos recursos obtidos com o edital Rockefeller, quase R$ 100 mil. Em vez de investir em tecnologia para o sistema de denúncias, a ONG usou o dinheiro para apoiar a incubação de uma startup, chamada Alinha, dentro do Tecendo Sonhos.
Parceira no programa, a Alinha avalia as oficinas de costura atendidas e as inclui em uma plataforma para promover a aproximação desses estabelecimentos com confecções que pagam valores de mercado. Apenas as oficinas que participam das capacitações do Tecendo Sonhos têm acesso à plataforma da Alinha.
"Tentei aproveitar o curso ao máximo. Minha convivência com as pessoas que trabalham comigo melhorou, até minha autoestima", observa o boliviano Nilton Vargas Aruquipa sobre o programa. Com duração de oito meses, a iniciativa, que é gratuita, precisou passar ainda por outros ajustes.
Foi preciso ganhar confiança
Segundo Cristina, a metodologia de trabalho também precisou ser modificada. Isso porque houve resistência dos empreendedores em trabalhar diretamente com a equipe da Aliança, como já ocorre desde 2005 em outros programas da ONG. "Eles são desconfiados, recebem muitas ameaças no Brasil", pontua a diretora.
A saída foi buscar apoio junto a entidades que já contavam com a confiança dos imigrantes, caso do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante, Coletivo Si, Yo Puedo e Presença na América Latina (PAL). A Aliança passou a capacitar membros dessas organizações parceiras para que os treinamentos fossem replicados. Neste ano, já foi possível oferecer o treinamento em conjunto.
Além disso, a forma de aprendizagem demandou outras mudanças. "Costumávamos trabalhar sentando com os empreendedores e vendo as necessidades, os desafios que tinham. Mas os imigrantes estranharam isso. Eles queriam aprender as soluções direto. A forma de ensinar o conteúdo resultou em uma metodologia específica para o Tecendo Sonhos", observa Cristina.
Menos turmas, mas com mais tempo
Cristina pontua que, ao mesmo tempo, já durante a existência do programa, também foi necessário adaptar a duração do curso para alcançar avaliações melhores. A capacitação passou de três meses para oito meses, o que acabou levando a uma redução no número de turmas atendidas ao longo do ano, de quatro para duas, com uma média de 20 a 30 alunos cada. Por outro lado, cursos pontuais foram criados, abrangendo, somente neste ano, 439 imigrantes. Desde 2014, 700 oficinas de costuram foram atendidas em turmas do Tecendo Sonhos.
"Atendendo menos turmas, percebemos que nosso impacto foi muito maior, com mais qualidade. Tivemos empreendedores, por exemplo, passando a ter coragem de precificar os produtos, entendendo que ele pode bancar isso porque há um outro mercado para eles. É feito todo um trabalho de empoderamento", salienta a diretora.
A oficina de Nilton Vargas Aruquipa está entre as beneficiadas. Ele mesmo foi um dos empreendedores que dizem ter se sentido mais seguros para recusar ofertas baixas de pagamento. "Eu faço um acabamento perfeito, não compensa cobrar o preço antigo. Vi que preciso valorizar minha mão de obra", destaca o empreendedor.
De acordo com ele, 80% das demandas apontadas pela Alinha para regularizar a oficina dele já foram atendidas. Todos os nove funcionários estão com a documentação em dia, morando, inclusive, em local separado da oficina, como a lei exige para as empresas enquadradas no Simples Nacional. "Também organizei a instalação elétrica, a sinalização para banheiros, caixa de primeiros-socorros, equipamentos de proteção individual, cadeiras reguladas para os costureiros", afirma Nilton, que, depois do Tecendo Sonhos, também aprendeu a separar a receita da oficina do próprio salário. "Agora anoto tudo. Tento fazer as coisas da melhor forma possível."
Em 2020, a Aliança Empreendedora planeja expandir a proposta do Tecendo Sonhos para Pernambuco, em Caruaru, na região do Agreste, polo têxtil no Nordeste. A ideia é trabalhar com mulheres nordestinas que vivem uma realidade muito parecida com a dos imigrantes latino-americanos em São Paulo.
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