Jovem cria sistema que purifica água no sertão usando a luz do sol
Quando escreveu "Vidas Secas", o autor alagoano Graciliano Ramos traçou um retrato da migração nordestina causada pela seca no sertão. Em 2013, após 75 anos da publicação, foi por meio da obra literária que a soteropolitana Anna Luísa Beserra, com 15 anos à época, descobriu os danos que a falta de água pode causar a uma população.
Seis anos depois, em setembro de 2019, Anna, 21, tornou-se a primeira brasileira a ganhar o Jovens Campeões da Terra, principal premiação da ONU (Organização das Nações Unidas) para pessoas entre 18 e 30 anos que estão desenvolvendo projetos relacionados à melhoria do meio ambiente. Isso porque, ainda por influência do livro, ela criou o Aqualuz, um aparelho de estrutura simples que purifica água através de raios solares.
"A literatura nos faz mergulhar na realidade, né? Com 'Vidas Secas' aprendi que a falta de água está ligada a problemas como a fome ou a impossibilidade de continuar vivendo em determinadas regiões", explica.
Juntando a recém-descoberta ao sonho de ser cientista que a acompanhava desde a infância, Anna decidiu tentar encontrar uma solução para o problema. Na escola, um colégio particular de Salvador (BA), havia um cartaz convidando os alunos a submeterem projetos no Prêmio Jovem Cientista, realizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Logo se inscreveu para participar.
Coincidentemente, o tema da edição de 2015 era "Água: Desafios da Sociedade". Assim, ela começou a pesquisar sobre tecnologias relacionadas ao tratamento da água. Encontrou o método SODIS, desenvolvido pelo Instituto Federal Suíço de Ciência e Tecnologia Aquática.
Basicamente, é um processo em que garrafas plásticas são preenchidas com água e deixadas sob o sol por, no mínimo, seis horas e, no máximo, dois dias, para que os raios solares UV eliminem possíveis bactérias.
Anna Luísa, então, pensou que poderia adaptar a tecnologia para a realidade de famílias sertanejas. "Durante minhas pesquisas, descobri pessoas que estavam sofrendo com problemas relacionados à água. Muita gente com diarreia, febre, fraqueza... E começamos a identificar que talvez isso tivesse ligação com as cisternas que eles tinham em casa", conta. Assim, juntou o processo de matar bactérias por meio de alta incidência solar com a criação de um filtro que fosse responsável por separar possíveis impurezas externas que caíssem no reservatório.
As cisternas no sertão
O semiárido brasileiro, segundo a SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), é composto por 1.262 municípios, com quase 28 milhões de habitantes. É a região semiárida mais populosa do mundo.
No sertão nordestino, as pessoas dependem da captação e armazenamento de água da chuva para utilizar em ações cotidianas, já que os rios — à exceção do São Francisco e do Paraíba — são classificados como temporários, por terem água apenas em épocas chuvosas.
Desde 2003, o Projeto Cisternas, do governo federal, implanta nas casas um reservatório para captar e armazenar água da chuva. Segundo o Ministério da Cidadania, o Brasil possui pouco mais de 1,6 milhão de cisternas, sendo 1,5 milhão apenas no Nordeste.
"O problema é que, às vezes, cai algum bichinho, alguma coisa de fora? E aí suja a água e complica tudo", conta o agricultor Sebastião Rodrigues, 44.
Tiãozinho, como é conhecido na região onde mora, em Piranhas (AL), fala com propriedade: por consumirem água que não era potável, os quatro sobrinhos dele precisavam ser socorridos no posto de saúde com frequência. Coisa de visitar o hospital duas vezes por mês, segundo ele. O motivo eram as fortes crises de diarreia, vômitos e mal-estar.
"Tudo mudou ano passado quando a Anna chegou aqui com o Aqualuz, apesar da nossa desconfiança no começo", diz Tiãozinho, explicando que, a princípio, não acreditou na estudante. "Parecia simples demais para dar certo. Sei lá, né? Nos acostumamos a pensar que tudo precisa ter uma tecnologia de outro mundo para funcionar bem", completa.
Purificando água de forma simples
A ideia premiada de Anna tem uma estrutura simples na prática. A jovem não queria complicar a vida dos moradores. "Eu sabia que, quanto mais difícil fosse de ser usado, menos as pessoas usariam. Tinha que ser algo prático", ela diz.
O dispositivo, na verdade, é uma caixa de inox, em que a tampa é uma placa de vidro. Dentro, existe um filtro que, na ideia original, era feito de sisal, a fibra da planta de mesmo nome.
A região do semiárido brasileiro é a maior produtora de sisal, por isso, Anna pensou que, assim, seria mais fácil para os próprios moradores substituírem o filtro quando necessário. É por meio desse filtro que possíveis corpos sólidos são separados da água.
"O aparelho não requer cuidados muito elaborados, na verdade. É só realizar a limpeza adequada com água e sabão e, depois, colocar de volta na cisterna", explica.
O dispositivo fica acoplado na bomba da cisterna. A água, então, sai do reservatório e vai, através de uma mangueira de encanamento, para dentro do Aqualuz. Lá, fica parada e exposta ao sol. Quando estiver própria para consumo, um adesivo verde colado na tampa de vidro ficará laranja. Foi utilizado um adesivo já disponível no mercado, mas Anna diz que está desenvolvendo um modelo próprio. Em média, o processo de purificação dura duas horas.
Atualmente, o filtro de sisal foi substituído pelo de tecido sintético, assim ele pode ser trocado uma vez por ano, com limpeza semanal.
O Aqualuz
Em 2015, Anna reuniu uma equipe de voluntários e criou a startup SDW (Safe Drinking Water For All, que, em tradução livre, significa Água Potável Para Todos) para começar a produzir o Aqualuz.
A primeira instalação foi no município de Valente (BA). Desde então, 107 casas — espalhadas pelos estados da Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas — receberam a tecnologia. Para conseguir implantar as unidades, ela contou inicialmente com a parceria de ONGs e voluntários e depois saiu em busca de empresas com foco em empreendedorismo social para financiar o projeto.
Para chegar à atual versão do dispositivo, Anna desenvolveu outros dez protótipos. "Testei a caixa do Aqualuz com vidro espelhado, depois fibra de vidro preta, filtros de polietileno... Não consigo lembrar quantos outros materiais usei."
A confirmação de que o modelo mais recente era efetivo veio por meio de análise. Anna encomendou uma pesquisa em um laboratório certificado, que utiliza padrões estipulados pelo Ministério da Saúde. Assim, foi comprovado que o aparelho atual do Aqualuz consegue acabar com 99,9% das bactérias anteriormente presentes na água.
"Nós entendemos que, além de eficaz, o Aqualuz é uma tecnologia muito acessível. Além de ter validade de 20 anos, ele tem um custo médio de R$ 0,3 a cada 10 litros de água." O dispositivo, atualmente, tem capacidade de purificar até 30 litros de água por dia.
Por ser uma tecnologia recente, voluntários do projeto fazem monitoramento frequente. Em um aplicativo desenvolvido para uso interno, agentes de campo da equipe da Safe Drinking Water for All ou pessoas selecionadas na comunidade colhem depoimentos dos moradores.
"Queremos ver se está tudo bem. Se eles estão sabendo usar, se os problemas causados pela contaminação da água persistem ou se melhoraram? A ideia é, além de monitorar para pensar em melhorias, conseguir ter uma base de dados para desenvolver uma pesquisa no futuro", explica Anna Luísa.
Hoje formada em biotecnologia pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), Anna Luísa recebeu, em setembro deste ano, a honraria máxima voltada a causas ambientais da ONU. O prêmio Jovens Campeões da Terra da Organização reconhece jovens de 18 a 30 anos que estão empreendendo com impacto social. Com o Aqualuz, a baiana é a única brasileira a conseguir o feito.
"Eu achei que era mentira! Eu trabalhei tanto em cima desse projeto, estudei tanto. Mas nunca achei que esse momento chegaria. Isso só me motivou a continuar pensando em novas tecnologias para ajudar mais e mais pessoas que não têm acesso à água ou à água potável no sertão nordestino. É isso que quero fazer", finaliza Anna.
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