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Elas não querem fim da Lei de Cotas: o que dizem as pessoas com deficiência

Marcelo perdeu a visão há quase 20 anos e voltou a trabalhar por conta da Lei de Cotas  - Divulgação/Dorina Nowill
Marcelo perdeu a visão há quase 20 anos e voltou a trabalhar por conta da Lei de Cotas Imagem: Divulgação/Dorina Nowill

Bárbara Forte

De Ecoa

04/12/2019 09h40

Marcelo Panico, de 50 anos, levava uma vida comum até que, aos 32 anos, perdeu totalmente a visão em pouco menos de três meses. O advogado teve diagnosticada uma doença grave na retina e achou que, dali em diante, não poderia mais trabalhar.

Foram dois anos até que ele encontrasse na Lei de Cotas uma forma de resgatar a autoestima e voltar ao mercado de trabalho.

Foi um período de luto completo até que eu descobrisse que havia a chance de viver plenamente de novo. Achei que nunca mais iria advogar na minha vida."

Após passar por um período de reabilitação na Fundação Dorina Nowill para Cegos, Marcelo — que nunca tinha nem convivido com pessoas cegas — reaprendeu a realizar as atividades que costumava fazer antes da cegueira e, em 2005, passou a trabalhar como assistente jurídico em uma grande empresa de telecomunicações.

"Só voltei ao mercado por conta da legislação. A Vivo, empresa onde eu trabalhei após a doença, tem uma política que contrata PCDs (pessoas com deficiência)", diz.

Ele entrou na companhia como assistente jurídico, mas foi promovido à função de advogado. Em 2008, mudou para a Nextel, onde, também por meio da Lei de Cotas, trabalhou por mais nove anos em sua área de atuação.

Desde 2018 como profissional da Fundação Dorina Nowill, ele avalia que, se não fosse pela legislação vigente, não teria conquistado autonomia. "Trabalhar é essencial, traz bem-estar social e autoestima."

Para ele, a proposta do governo, que encaminhou ao Congresso um projeto de lei que pode acabar com a política de cotas para pessoas com deficiência ou reabilitadas, é um retrocesso. "O PL 6.159/2019 joga as PCDs no mero assistencialismo. Não queremos esmola, queremos inclusão."

A procuradora Elisiane dos Santos, do MPT-SP (Ministério Público do Trabalho de São Paulo) ressalta que o PL 6159/2019, em tramitação na Câmara, é inconstitucional: "Funda-se em preconceitos e estereótipos reproduzidos por parte das empresas, desonerando-as de suas obrigações, em total desrespeito às pessoas com deficiência, que correspondem a 25% da população do país, bem como em desrespeito à legislação construída ao longo dos anos".

Assim como Marcelo, outras pessoas com deficiência tiveram suas vidas modificadas por conta da Lei de Cotas. À reportagem de Ecoa, elas avaliam a medida do governo como um veto à inclusão. Veja, abaixo, os relatos:

Larissa conquistou vaga como auxiliar administrativo após acidente que imobilizou mão esquerda - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Larissa conquistou vaga como auxiliar administrativo após acidente que imobilizou mão esquerda
Imagem: Arquivo Pessoal

Larissa Fernanda dos Santos Pereira, 30 anos, auxiliar administrativo

"Sofri um acidente de carro há cerca de dois anos e meio e tive uma monoplegia no braço esquerdo. Ou seja, o impacto da batida fez com que eu perdesse os movimentos do meu braço esquerdo (do cotovelo até a mão).

Eu fiquei um ano e meio afastada pelo INSS e quis, há cerca de um ano e meio, voltar às minhas atividades. Foi aí que me falaram sobre a Lei de Cotas. Me cadastrei em um site de pesquisa de empregos e fui chamada para uma série de entrevistas.

Com o laudo do médico em mãos, eu fui a algumas delas até ser contratada no Grupo Bandeirantes de Comunicação, onde atuo há um ano e dois meses.

Voltar ao mercado de trabalho me trouxe de volta autoestima, sensação de inclusão e autonomia.

O fim da lei seria um problema enorme, pois as empresas ainda enxergam a pessoa com deficiência com muito preconceito, acham que elas são incapazes."

Isadora Meirelles Roberto é relações públicas e tem visão monocular do olho direito - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Isadora Meirelles Roberto é relações públicas e tem visão monocular do olho direito
Imagem: Arquivo Pessoal

Isadora Meirelles Roberto, 27 anos, relações públicas

"Eu só enxergo com o olho direito, pois nasci com glaucoma congênito no olho esquerdo, o que me fez perder a visão desse lado ainda pequena.

Estou no meu segundo emprego contratada pela Lei de cotas. Primeiro eu trabalhei no Itaú e, agora, estou na Resultados Digitais, uma empresa de marketing digital. Para me candidatar às vagas, realizei processo seletivo focado em pessoas com deficiência.

Demorei seis meses para conseguir emprego no banco e, depois, cerca de um ano para ir para minha área de verdade. Trabalho na comunicação corporativa da empresa.

Para mim, a lei tem o objetivo de equiparar o acesso ao mercado de trabalho para as pessoas com deficiência.

Trabalhar significa empoderamento pessoal. É o primeiro passo para mudar, de fato, a vida das pessoas com deficiência, pois mexe diretamente com a autoestima delas. Envolve nossa autonomia financeira."

Thiago Motta teve paralisia ao nascer e ficou paraplégico - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Thiago Motta teve paralisia ao nascer e ficou cadeirante
Imagem: Arquivo Pessoal

Thiago Motta, 35 anos, jornalista

"Tive paralisia cerebral ao nascer prematuro, de seis meses e meio. A falta de oxigenação na hora do parto ocasionou uma paralisia que me deixou com dificuldade de movimentos, falta de coordenação motora e força muscular. Mesmo cadeirante, nada me impediu de estudar e, ao final do ensino médio, de ir em busca de um emprego.

Na época eu tive dificuldade em encontrar vagas, mesmo em empresas que tinham, por lei, a cota. Empresas de menor porte, que não tinham obrigatoriedade, já foram taxativas ao dizer que não me contratariam por 'não precisarem de cadeirantes'. Mas eu não desisti de procurar.

Com 21 anos, encontrei meu primeiro emprego em uma empresa de telemarketing por conta da Lei de Cotas. Para entrar no emprego em que eu estou hoje, na startup Lunes, porém, foram dois anos.

Normalmente, o mercado não vê a PCD como capaz, o que nos leva a exercer cargos mais administrativos. No entanto, é o primeiro passo. Hoje atuo na minha área, como jornalista, em uma startup.

A lei é extremamente necessária num país cheio de desigualdade como o nosso. Ela faz com que as empresas deem uma oportunidade para uma parcela da população que, se não tivesse essa porta aberta, não teria chance de provar o seu valor."

Ela vem para corrigir uma distorção da nossa sociedade de falta de oportunidade. Não é só uma questão do emprego em si. Impacta também na socialização da pessoa com deficiência."