Ex-membro de gangue nos EUA, ele ajuda presos a enxergar o próprio machismo
Mais antiga prisão da Califórnia, nos EUA, a penitenciária estadual de San Quentin foi a casa de George Luna, 58, por mais de meia década. Do lado de dentro dos muros, enquanto o detento cumpria uma das penas adquiridas ao longo de uma vida testando os limites da lei, um ousado programa de reabilitação se desenrolava à margem da imposição viril comum aos pátios presidiários masculinos.
Incomodado com o frio de um dia chuvoso, George entrou em uma sala em busca de abrigo. Sua atenção foi capturada pelas palavras de um homem de cabelos grisalhos. Sentados, detentos ouviam. "Gostei do que aquele homem branco dizia, mas me perguntei o que ele queria. Não podia ser porque se importava com caras como nós", refletiu George.
Ali, os presos, encorajados a expor sentimentos e revisitar traumas, se dedicavam à tarefa de transformar violência em inteligência emocional. Liderado pelo psicólogo Jacques Verduin, o Grip (Guiding Rage Into Power -- algo como Transformando Raiva em Poder, em tradução livre) é um programa desenvolvido após mais de 20 anos de estudos comportamentais em cadeias.
Abusos físicos na infância
Ex-membro de gangue, George Luna acumulava detenções. Vítima de abusos físicos dentro de casa, desde cedo desenvolveu comportamento agressivo. Hoje, livre, repassa os ensinamentos do Grip a outros presidiários.
George não é um homem fácil de se localizar. Ameaçado de morte pelo trabalho que conduz, ele se esconde de redes sociais. Pouco antes de pegar a estrada rumo à formatura de uma de suas turmas no programa, contou sua história por telefone.
"Apanhei dos meus irmãos todos os dias da minha vida. Eles eram cruéis. Eu precisava limpar minhas lágrimas e sangue". A reprodução da violência levou o garoto de 11 anos ao reformatório. Quatro décadas depois, ele continuava se dividindo entre a liberdade e o cárcere. George conta que era membro de uma gangue e que cometeu uma série de crimes de lesão corporal. "Eu fui detido várias vezes por bater em pessoas com tacos de beisebol. Foi o jeito como eu cresci", diz.
Na prisão, participou de rebeliões que deixaram pessoas feridas. "Por muito tempo, entrei e saí de prisões. Aquele ambiente violento era só o que eu conhecia", relembra. "Uma vez, queriam me dar 44 anos de pena por 92 crimes. Aos 45 de idade, seria uma sentença de morte".
Um alívio na condenação forçou-o a encarar seis anos na penitenciária de San Quentin. Localizada próximo à cidade de San Rafael, no estado da Califórnia, uma das regiões mais progressistas dos EUA, a prisão recebe recorrentes ações sociais e visitas de voluntários.
O aspecto amistoso da unidade levou-o a cogitar atos de rebeldia para ser transferido. Porém, antes de o plano se concretizar, George conheceu Jacques. Motivado pelo voluntário, acabou participando do Grip, recebeu seu diploma e hoje só volta à prisão para aplicar o curso.
O programa
Voltado aos detentores de longas condenações, o Grip é composto por quatro passos: parar a violência, praticar a conscientização, desenvolver inteligência emocional e compreender a dor das vítimas.
Durante dez meses, os trinta participantes mergulham em atividades que, a fim de auxiliar na ressocialização, questionam os atos causadores de seu encarceramento. O principal objetivo do Grip é oferecer a transformação de atitudes violentas em um comportamento pacificador, diz Jacques Verduin, fundador.
"A diferença entre este e outros programas é que o Grip se baseia em 24 anos conhecendo o interior de prisões, a cultura e a linguagem que se adequa a essa população", explica.
Jacques promove iniciativas voltadas à maior população carcerária do mundo. Segundo a ONG Human Rights Watch, mais de 2 milhões de pessoas estão presas nos Estados Unidos.
Uma das abordagens que mais se destacam é a do questionamento do sistema de domínio masculino. Durante os encontros semanais, os detentos são incentivados a desconstruir práticas machistas.
"Ações como ser forte e se achar superior vão dentro da caixa. Então perguntamos o que há fora. E, no fim, várias coisas escritas na lousa guiam as pessoas a desconstruir seu gênero e masculinidade de um jeito revelador", relata o psicólogo.
George, cuja conduta incluía demonstrações tóxicas de masculinidade, assume ter sido agressivo com mulheres antes do Grip. Segundo ele, o curso mudou sua postura.
"Homens não querem mostrar emoções, têm que ser duros. Eu não concordo. Eu choro com esses malditos comerciais de cachorrinhos na televisão", diz o ex-detento, rindo.
Os números do sucesso
"Um preso na Califórnia custa até 75 mil dólares. Dos 599 detentos atendidos, 199 receberam data de condicional. São 15 milhões de dólares de impostos que poupamos por ano", calcula Jacques.
A economia aos cofres do estado, apesar de valorizada, não é o que move o voluntário. A motivação reside na promoção da paz entre vítima e ofensor. "É um mito que esses caras, mais do que qualquer outro, não se reparariam."
De acordo com George, somente 1 dos quase 200 prisioneiros em condicional voltou ao presídio -- um índice de reincidência de 0,5%.
Estudo publicado no Journal of Economic Psychology mostrou que os níveis de confiança cresceram em detentos que concluíram o Grip. A pesquisa também observou efeitos positivos no comportamento pró-social — ações voluntárias com o intuito de beneficiar outros.
Jacques defende que o encarceramento não é fruto do crime cometido, mas das crenças que justificam o ato. A desconstrução do sistema de crenças incentiva a mudança de hábitos.
"Eu teria mudado minha vida antes, mas, até eu conhecer o Jacques, ninguém se importou", lamenta George. "Somos apenas garotos que se perderam pelo caminho."
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