Sônia Guajajara: "Bolsonaro é uma ameaça para o planeta"
Sônia Guajajara é a principal liderança feminina indígena do país. Nas eleições passadas, compôs a chapa do PSOL, se candidatando à vice-presidência ao lado de Guilherme Boulos. Hoje atua como coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), grupo que reúne mais de 305 povos indígenas do país.
Desde o último dia 2, ela está em Madri, para participar da COP-25. Junto de representantes de povos indígenas de diversas partes do mundo, também tem organizado agendas paralelas para garantir que suas demandas sejam atendidas.
Desde a juventude, Sônia é ativa em movimentos sociais e frequenta a Conferência do Clima (COP) anualmente (a primeira foi em 2009). Uma das principais referências da sociedade civil da COP-25, ela também acompanha outros espaços institucionais no plano internacional, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU desde 2017.
É conhecida por atitudes de coragem. Em 2010, entregou o prêmio Motosserra de Ouro, um ato de repúdio organizado pelo Greenpeace para quem mais desmata o meio ambiente, para a então ministra da agricultura, Kátia Abreu. Em 2015, recebeu o prêmio Ordem do Mérito Cultural, entregue pelas mãos da então presidenta Dilma Rousseff.
Na casa que alugou juntamente com um grupo de indígenas brasileiros em Madri, Sônia Guajajara recebeu o repórter Pedro Borges, do Coletivo de Mídia Alma Preta, e concedeu a seguinte entrevista.
Qual é a avaliação do movimento indígena faz do governo Bolsonaro?
Somos totalmente contrários. O governo Bolsonaro tem feito uma agenda totalmente destrutiva e que favorece todos esses grupos que historicamente desmataram, exploraram. Bolsonaro é um porta-voz oficial das mineradoras, do agronegócio e do desmatamento.
A nossa demanda é por demarcação dos territórios indígenas. Esse é o ponto principal. Porque Bolsonaro, desde o início da campanha, já posicionava que não ia demarcar nenhum centímetro de terra indígena. Ele dizia no governo dele não haverá nenhum centímetro de terra indígena para índio, né? Então ele está cumprindo isso já na prática. Ele não só não está demarcando, mas está revendo territórios já demarcados e está negando atendimento para povos indígenas que estão em áreas ainda não regularizadas. Para nós, isso é um genocídio declarado. É um genocídio programado.
É preciso uma reação da população, dos governos internacionais, da comunidade internacional porque a Amazônia já é vista como esse lugar que é pulmão do mundo então tem que ser também responsabilidade de todo mundo.
A COP-25 mudou duas vezes de lugar. A ideia inicial era de que ela acontecesse no Brasil, mas o Itamaraty desistiu de sediar o evento no ano passado, alegando como motivos restrições orçamentárias e a transição de governo. O endereço passou a ser, então, o Chile. E, aí, foi a vez do governo chileno banir a COP-25 devido às tensões no país. Por isso, o encontro voltou para a Europa, onde tradicionalmente acontece. Em sua avaliação, qual o impacto dessas mudanças?
A América Latina está vivendo essa reviravolta política. E, no Chile, teve essa reação do povo, dos movimentos, contra o governo, o neoliberalismo? Ninguém aguenta mais! Mas eu acho que não era motivo para desistir da COP. Na verdade, essa COP era para acontecer no Brasil. Seria o momento da América Latina, para a gente poder fazer vários eventos grandiosos, todo mundo muito articulado. Essas recusas eu acho que foram uma desculpa para os movimentos que estavam acontecendo no Chile. Só que acabou vindo de novo para a Europa, né?
Para nós, a mudança teve um prejuízo muito grande. É muito urgente essa discussão sobre o clima. A gente precisa encontrar jeitos para reduzir esses efeitos e os governos estão aí falando, falando, discutindo, mas não conseguem chegar a uma estratégia de mudança concreta. E aqui, na Europa, a discussão fica mais branda, os movimentos e a população não conseguem chegar com mais força? Fica sempre nessa embromação.
E, com toda essa mudança, mesmo com pouco tempo, como foi para o movimento indígena se organizar e quais são as agendas de vocês aqui?
A gente perdeu muito porque a gente se organizou muito cedo para ter uma representação indígena grande na COP. Eram mais de quarenta lideranças prontas para chegar em Santiago. E aqui a gente conseguiu trazer pouco mais de vinte, porque os custos são mais altos.
Mesmo assim, mantemos as várias agendas. Tem o pavilhão indígena, que é puxado pela América Latina, pela COICA (Coordenação das Organizações Indigenas da Cuenca Amazônica), tem o Caucus Indígena [como é chamado o Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas], encontro que acontece todos os dias e onde discutimos estratégias e demandas, que, depois, são levadas por um porta-voz para a discussão oficial.
E, além do Caucus, estamos participando de agendas de parceiros. A embaixada da Alemanha, por exemplo, levou a representação indígena para participar de um encontro. A gente também recebeu convite do governo da França, para participar de diálogo com os governadores da Amazônia e, fora isso, nós temos os eventos nossos.
A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) tem uma agenda própria de atividades. São eventos paralelos, mas que acontecem no espaço oficial da ONU. A gente traz para o debate, por exemplo, nossa preocupação com a conjuntura política brasileira. Nesse momento em que o mundo inteiro está discutindo redução do aquecimento global, controle das mudanças climáticas, o Brasil está totalmente na contra-mão.
Quando o presidente nega a demarcação de territórios indígenas, isso é uma afronta, porque comprovadamente as terras indígenas contribuem para evitar a redução de gás carbônico.
É muito preocupante o momento que o Brasil está passando agora, com a Amazônia incendiada, desmatada. E o presidente, em vez de achar medidas efetivas para mudar esse cenário, fica querendo achar culpados e acaba culpando os próprios indígenas, acaba culpando as ONGs. Isso é muito grave.
Como é que o Brasil vai assumir compromissos aqui se, na prática, está fazendo totalmente o contrário? Então a gente traz essas preocupações para as nossas atividades aqui. A conjuntura política brasileira do governo Bolsonaro é uma ameaça não só para o Brasil, mas para todo o planeta. Bolsonaro é uma ameaça para o planeta.
Mesmo diante de tantos obstáculos, vocês conseguiram ter uma boa articulação aqui na COP. Quais são as suas expectativas para essa conferência do clima?
A gente tem conseguido aumentar muito a visibilidade da luta indígena. Talvez não por conta da preocupação de pessoas com a gente, mas com o meio ambiente. Como a luta indígena nunca é feita dissociada da luta ambiental, e nós estamos comprovando isso a cada dia, que os modos de vida dos povos indígenas têm contribuído muito para o equilíbrio climático, então temos despertado muito a atenção das pessoas e dos próprios representantes das Nações Unidas.
Por exemplo, em 2015, quando foi assinado o Acordo de Paris, foi afirmado que o modo de vida dos povos indígenas e o conhecimento de comunidades tradicionais são uma das últimas alternativas para reduzir o aquecimento global e que esse conhecimento precisa ser associado ao conhecimento científico. O acordo de Paris reconheceu isso tudo.
Então nós estamos com uma articulação de povos indígenas muito boa também internacionalmente. E tem uma cobertura muito boa da imprensa global. Então a gente espera muito que o mundo possa ver isso e apoiar nossa luta, apoiar a causa indígena, que não é mais uma causa só nossa, né?
Nesse último mês agora, a gente teve essa jornada com a campanha "Sangue indígena: nenhuma gota a mais", que percorreu doze países da Europa, vinte cidades e a nossa preocupação principal aqui era o acordo do Mercosul. Porque esse acordo com certeza vai pressionar muito mais os territórios indígenas do Brasil e de toda a América Latina.
Querer ceder esses territórios para as monoculturas, para a soja, para a cana de açúcar, para a criação de gado, para o eucalipto, para a exploração de madeira, de minérios... A gente trouxe essa preocupação também para a Europa, falando com parlamentares para criar leis que possam garantir a rastreabilidade das empresas que estão importando produtos brasileiros e evitar que se compre produtos dessas áreas de conflito, onde há violação dos direitos humanos, dos direitos das mulheres, desmatamento, onde se usa trabalho de mão de obra escrava.
Quando pensamos em mudanças climáticas, pensamos no impacto global que elas têm. Mas existem povos que são e serão mais impactados. Qual é a dimensão social do impacto das mudanças climáticas? Alguns sentem mais do que outros?
A gente já vem sentindo as mudanças há algum tempo. Elas têm alterado a soberania alimentar, por exemplo. Se não chove mais nos tempos certos, seguindo as estações como eram, então não tem como você plantar mais, garantindo que essa plantação vai crescer e vai dar frutos. Há aí uma alteração.
A floresta mesmo, como um todo, já perde muito da sua biodiversidade com as altas secas, muitas plantas morrem e, inclusive, podem ser plantas que a gente utiliza para fazer os nossos rituais. Então a soberania alimentar e a cultura são altamente impactadas.
Agora muita gente fala mesmo que alguns vão sentir mais do que os outros. Claro: agora alguns sentem mais o que os outros. Mas, se não houver uma mudança agora, todo mundo vai sentir. Essas mudanças vão chegar para todo mundo. Porque quem é que garante a água que chega à cidade, que chega em qualquer outro lugar do mundo? É esse lugar que está ali preservado, que está ali produzindo. E muitos são o lugar onde a gente está, onde os indígenas estão, onde os quilombolas estão, as comunidades tradicionais que protegem com o seu próprio modo de vida. Então, se seca ali para nós, a gente é impactado primeiro porque é ali, direto. Mas isso vai chegar também para todo mundo.
Na sua opinião, é possível manter essa agenda de mudanças climáticas em um modelo econômico capitalista? Como o capitalismo dialoga com toda essa violência?
Não é possível reduzir os efeitos das mudanças climáticas sem mudar esse sistema econômico. Essa produção desenfreada cada vez mais demanda exploração do meio ambiente e, quanto mais se explora dessa forma, mais se aumenta essas emissões.
Quando você faz o recorte Brasil, quem mais emite? O desmatamento e as queimadas. E muitas vezes o desmatamento está acontecendo para ceder áreas para a expansão agrícola, para o agronegócio. E as queimadas também em decorrência do desmatamento. Então, se não há uma mudança nesse modelo econômico, nessa forma de produção, não tem como diminuir as mudanças climáticas.
Não tem outro jeito além de uma mudança no modelo econômico e principalmente no modelo de produção e também no modelo industrial. Tem que diminuir a utilização de combustíveis fósseis, de carvão para essa produção também na indústria.
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