Como líderes indígenas estão lutando para adiar o fim do mundo
"2019 não foi; está sendo ainda um ano pesado, [um ano] de chumbo. Foram contabilizadas as mortes de lideranças indígenas em 2019, [o número] foi maior que o do ano passado. Foram assassinatos selecionados de lideranças que estão trabalhando na defesa dos direitos do seu povo. Não tinha ninguém fazendo nada ilegal. Então, nós estamos abalados com esse ano, com a violência que invadiu o nosso cotidiano. Nós estamos vivendo um período de assombro. 2019 é um desafio enorme e [o livro] 'Ideias para adiar o fim do mundo' aparece como uma espécie de revelação da crise que nós estamos passando globalmente".
As palavras acima são do líder indígena, ativista ambiental e autor do best-seller "Ideias para Adiar o Fim do Mundo" (Companhia das Letras), Ailton Krenak. O livro — que reúne duas palestras e uma entrevista de Krenak — foi lançado em 2019, figurou entre os 3 mais vendidos da Flip (mais importante feira literária do país) e também nas listas da crítica especializada sobre as melhores obras publicadas em 2019. No site de vendas online Amazon, a obra chegou a ocupar o posto de mais vendido na categoria Literatura Nacional.
Mas Krenak não é apenas um sucesso de público e crítica. Ele é também um importante ativista socioambiental, a ponto de afirmar que o presidente Jair Bolsonaro deve ser "condenado internacionalmente" por sua ofensiva contra as reservas indígenas, que ele pretende abrir à mineração, além de ser uma ameaça para a Floresta Amazônica e ao equilíbrio do clima no planeta.
"O crime organizado está tomando conta dos governos da América Latina e isso é uma tragédia que socialmente nós ainda não estamos preparados para enfrentar. A condenação desse regimes autoritários deveria ser uma expressão óbvia do comportamento de cidadania das pessoas para além das fronteiras. Mas a própria ideia de cidadania nacional está muito desgastada", afirma.
A luta de Krenak não vem de hoje. Em 1987, ele ficou famoso por pintar sua face de preto com o tradicional jenipapo, enquanto discursava em defesa dos povos indígenas na Assembleia Constituinte. Graças ao seu protesto e à luta de centenas de lideranças, foi incluído na Constituição Brasileira de 1988 um capítulo sobre a proteção dos direitos dos indígenas. Ailton e seu povo, os crenaques, conhecidos anteriormente como botocudos, vivem às margens do Rio Doce, que chamam de Watu, e foi quase destruído, em 2015, pelo rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, no município de Mariana (MG).
Importante no passado, muito lido no presente, Krenak reflete sobre o futuro: "Vamos ver como será o 2020, o que que nós estamos plantando para o 2020... Porque a cada tempo nós semeamos e, depois, colhemos o que a gente plantou."
A queda do céu
"A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destrui-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar."
A fala poderosa acima é a epígrafe do livro "A queda do céu" (Companhia das Letras), publicado no Brasil em 2015 e narrado pelo xamã yanomami Davi Kopenawa ao antropólogo francês Bruce Albert. Ela profetiza o fim do mundo que enfrentaremos se continuarmos a devastar o meio ambiente. Em 2019, não parece que tenhamos nos esforçado muito para evitar que o céu desabe sobre nossas cabeças.
Comparado com o mesmo período do ano de 2018, o número de queimadas, na Amazônia, cresceu 45%, entre janeiro e outubro, e o desmatamento na região aumentou preocupantes 91%, entre janeiro e julho de 2019.
Davi Kopenawa, no entanto, faz de suas palavras ações. Por sua luta na defesa da floresta e da biodiversidade ao lado da Hutukara Associação Yanomami, o xamã, nascido no estado do Amazonas, ganhou em 2019 o importante Prêmio Right Livelihood, "o Nobel alternativo", que dá ao vencedor R$ 430 mil para serem usados em sua causa. Foi o mesmo prêmio ganho pela ativista ambiental sueca Greta Thunberg.
O livro que deixou Kopenawa ainda mais conhecido — mescla de manifesto xamânico contra a destruição das matas, teogonia yanomami e relato autobiográfico — é considerado pelo premiado escritor amazonense Milton Hatoum "o grande livro sobre a Amazônia". O autor de "Dois irmãos" disse em entrevista recente que o livro "fala da importância fundamental da floresta, da simbiose da natureza com o homem, com os indígenas e com o cosmos. Eles estão queimando não só a floresta, eles estão queimando toda uma história. A queima da floresta é a queima de uma história milenar. É um crime contra a humanidade".
Réquiem para um rio
Se não conseguirmos adiar o fim do mundo, como propõe Ailton Krenak, 2019 talvez seja lembrado por nossos netos como o ano em que um misterioso vazamento de óleo cru poluiu praias e mares do Nordeste e Sudeste e prejudicou sua vida marinha, matando dezenas de tartarugas. Poderá ser lembrado, também, como o ano em que, só em janeiro, no estado de Santa Catarina, 50 milhões de abelhas morreram envenenadas por agrotóxicos. É possível que essas memórias estejam nas mentes de nossos netos. Uma certeza, no entanto, é que eles lembrarão do crime ambiental que foi o rompimento da barragem em Brumadinho (MG). Um crime que deixou mais de 257 seres humanos mortos, destruiu o Rio Paraopeba e exterminou milhares de animais. Não é todo dia que se mata um rio. A tragédia de Brumadinho fez isso.
Em meio a essas verdades tristes, vale lembrar da incrível história da mãe e da filha que fecharam seu restaurante para alimentar os sobreviventes do desastre de Brumadinho e os bombeiros que trabalhavam nos resgates.
Estamos falando de Ivana Lúcia de Alcântara e sua filha Camyla Fernanda de Alcântara, donas do "Dona Ivana", na zona oeste de Belo Horizonte (MG). As duas, que costumavam passear pela região do rio Rio Paraopeba, um curso d'água de mais de 500 km de extensão, suspenderam o funcionamento comercial do estabelecimento para que os 500 voluntários que passaram pelo projeto cozinhassem as refeições da comunidade do Córrego do Feijão. Das mãos dessas voluntárias e voluntários saíam de 350 a 450 marmitas por dia que incluíam alimentos como arroz, feijão, macarronada e frango ensopado ou carne de porco frita.
Para o jornal mineiro "O Tempo", Camyla afirmou: "Era uma região muito bonita, mas eu acredito que aqui vai virar uma cidade fantasma. Não tem mais como esse lugar ser bonito. As pessoas devem colocar a mão na consciência."
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