Por que Guedes errou em declaração sobre meio ambiente em Davos
"As pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer", disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, durante o painel "Shaping the Future of Advanced Manufacturing", realizado durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça). A declaração, no entanto, ganhou repercussão negativa entre especialistas em meio ambiente e economia sustentável, que rebatem a afirmação dizendo que os grandes vilões são, na realidade, pessoas com grande poder aquisitivo.
Natalie Unterstell, especialista em políticas públicas, desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas, lembra que desmatar envolve muito dinheiro: "Sabemos muito bem, por experiência aqui no Brasil, documentada em inúmeros estudos, que quem desmata hoje, por exemplo, na Amazônia, não é o empobrecido. Para desmatar você precisa comprar trator, contratar gente, viabilizar logística numa região extremamente complicada, que é nos rincões da Amazônia".
"O desmatamento na Amazônia não é associado com o pequeno produtor. Certamente, acima de 70% do desmatamento vem do agronegócio", afirma Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudo Avançados da USP (Universidade de São Paulo) e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.
Quer dizer: o desmatamento de grande escala, principalmente da pecuária, não levou à pobreza. Pelo contrário: atraiu muita gente para a Amazônia que chegou pobre e permaneceu miserável"
Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudo Avançados (USP)
Ricos são os grandes emissores de CO2
Para Alexandre Costa, especialista em clima e professor da UECE (Universidade Estadual do Ceará), o impacto também é visto no gasto energético. "O modo de vida dos mais ricos demanda muita energia e muita matéria-prima, que é intensivo em carbono e está relacionado às maiores emissões. Os 10% mais ricos do planeta respondem por quase metade das emissões de CO2 (um dos gases de efeito estufa que causa aquecimento global), enquanto os 10% mais pobres emitem apenas 1% dos gases de efeito estufa", explica Costa, ao citar o estudo realizado pela OXFAM, em 2015.
Segundo esse relatório, as mudanças climáticas estão ligadas diretamente à desigualdade econômica. A pegada de carbono deixada por apenas 1% da parcela mais rica da população pode ser 175 vezes maior do que a emissão de 10% da população empobrecida, revela o estudo.
Paulo Guedes mente: os ricos estão devorando o planeta e o resultado da desestabilização do clima e da destruição dos ecossistemas será justamente mais fome e mais miséria sobre quem menos tem responsabilidade por isso
Alexandre Costa, professor da UECE (Universidade Estadual do Ceará)
E quais são as soluções?
Ainda no painel em Davos, Guedes afirmou que "não se tem um ambiente limpo porque as soluções não são simples, são complexas", referindo-se ao uso de agrotóxicos para a ampliação da produção de alimentos. A declaração foi mal vista pelos especialistas ouvidos por Ecoa:
"O ministro errou ao dizer que não há soluções com um meio ambiente limpo. O próprio Fórum elegeu como uma das agendas prioritárias a bioeconomia (modelo de produção industrial baseado no uso de recursos biológicos). É por essa razão que o Carlos Nobre, nosso grande cientista que tem repercutido essa possibilidade, essa terceira via, como ele chama, está participando de Davos", comenta Natalie Unterstell.
A afirmação também é rebatida por Fábio Sobral, economista e professor de Economia Ecológica da UFCE (Universidade Federal do Ceará). Ele acredita que a fala de Guedes, na verdade, seja uma desculpa. "Econômica e politicamente falando, o agronegócio é uma área influente. Vale lembrar que a defesa desse modelo de negócio é uma visão do atual presidente. A fala de Guedes soa mais como uma defesa à continuidade das práticas predatórias desenvolvidas pelo setor", afirma.
Sobral diz que o caminho seguido pelo agronegócio brasileiro é irracional do ponto de vista econômico. "A longo prazo, os gastos tendem a aumentar quando valorizamos um modelo de negócio como esse que promove degradação", afirma, dizendo que é preciso levar em consideração os custos futuros que o governo terá especialmente na área da saúde para conseguir tratar doenças resultantes da destruição do solo, rios, mata, e água."Os agrotóxicos não são necessários se você utiliza mecanismos de produção relacionados à agrofloresta. Você tanto preserva a água, a vegetação nativa, quanto adiciona valor, na medida que ele se torna um produto orgânico de maior potencial econômico", completa.
Natalie Unterstell destaca que é preciso entender o contexto histórico da fala do ministro em Davos. Para ela, uma das principais motivações do discurso de Guedes é a tentativa de limpar a imagem do Brasil internacionalmente, ainda mais depois da ida do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) à edição de 2019 do evento. "A fala do Bolsonaro no ano passado foi muito aquém do esperado. Foi lamentável. Além disso, tivemos uma comoção internacional sobre as queimadas na Amazônia."
Pela primeira vez, o Fórum de Davos traz as questões climáticas como um dos principais tópicos a serem discutidos. O pessoal lá já entendeu que não temos tempo a perder e isso muda tudo: agora não dá mais colocar o aquecimento global à margem dos assuntos, eles querem mudanças radicais sobre isso. Então, a fala do ministro causa uma desconexão entre o Brasil e as lideranças mundiais reunidas em Davos."
Natalie Unterstell, especialista em políticas públicas, desenvolvimento sustentável
Ela reforça, ainda, que Guedes ignorou todos os desafios e soluções tecnológicas encontradas ao longo dos anos para conter a degradação do meio ambiente, o que pode refletir na forma como o mundo vê o país. "Os investidores vão falar: 'Bom, então no Brasil é só investimento em coisa suja. Não tem por que a gente levar essa fronteira tecnológica da bioeconomia para o país, porque o Brasil não deve estar interessado".
Um novo caminho
Carlos Nobre, ao comentar sobre bioeconomia, destaca exemplo positivo do Brasil. "O que vai contra essa lógica? Milhares de ex-pecuaristas de pequena escala, que tinham algumas cabeças de boi, estão abandonando a pecuária e criando os sistemas agroflorestais, produzindo açaí, cacau, castanha e inúmeros outros produtos. E a rentabilidade dessas famílias melhorou exponencialmente. Isso é um dado que está nas estatísticas do IBGE. O açaí já traz mais de um bilhão de dólares para economia da Amazônia brasileira", afirma.
"Bioeconomia de floresta em pé beneficia muito mais a população e ajuda a corrigir a pobreza. Nos sistemas extrativistas de açaí, no norte do país, a rentabilidade média é duas vezes maior do que a máxima rentabilidade da pecuária", completa.
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