Como pessoas com deficiência encontram acessibilidade para curtir Carnaval
O Carnaval é uma das manifestações culturais mais populares do mundo. É tradicionalmente uma festa do povo e, teoricamente, feita para todos. Mas aproveitar os blocos de rua ou os camarotes não é uma tarefa simples. É preciso pensar em coisas como qual fantasia usar ou como fixar bem o glitter para mantê-lo intacto durante as horas de curtição.
Mas, caso você tenha algum tipo de deficiência, seja ela física, auditiva, visual ou cognitiva, a missão de curtir o Carnaval fica ainda mais complicada: A multidão, a quantidade de objetos jogados ao chão e a falta de acessibilidade em calçadas dificultam a participação de quem não enxerga, de quem tem dificuldade em se locomover ou de interagir socialmente, por exemplo.
Segundo o último Censo Demográfico, de 2010, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 24% dos brasileiros possuem algum tipo de deficiência. A advogada Mila Correa D'Oliveira, 32, faz parte tanto dessa parcela — ela tem Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo 3, uma doença neurodegenerativa que causa fraqueza progressiva em todos os músculos do corpo.
Morando em Salvador, cidade onde estão os maiores e mais famosos blocos de rua, ela também faz parte da população que conta os dias para o Carnaval chegar. Os problemas, porém, aparecem antes mesmo da chegada aos bloquinhos: ela precisa encarar a falta de rampas para subir nas calçadas, tem dificuldades para pegar transporte coletivo e até mesmo os carros de aplicativo, muitas vezes, se recusam a aceitar corridas por causa da cadeira de rodas, necessária para a locomoção dela.
Engana-se quem acha que os desafios param por aí. Após chegar à folia, a saga de uma pessoa com deficiência continua. Camarotes sem acessibilidade ou com acessibilidade limitada a um único espaço e olhares preconceituosos fazem parte da rotina de quem busca diversão.
"Já teve vez de eu pagar caro para ficar em um camarote e chegar lá e ver que não tinha como eu chegar próximo ao palco porque não tinha acessibilidade. Sempre que isso ocorre, pedem para um segurança te carregar e levar, mas eu detesto ser carregada. Esse é o 'jeitinho' de arrumar a situação no momento ao invés de fazer o correto," relembra Mila Correa.
"Não queremos ser destacados dos demais"
Os mesmos incômodos são sentidos pela xará paulista de Mila Correa. Publicitária e atuante do Movimento Brasileiro das Pessoas com Deficiência, Mila Guedes conta que já frequentou camarotes em que era necessário subir escadas para chegar ao local. Ela também usa cadeira por causa de uma esclerose múltipla (EM). Além disso, tem degeneração de Stargardt, que a deixou com apenas 20% da visão.
Atualmente, a Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, e o Anhembi, em São Paulo, possuem camarotes exclusivos para o público com deficiência. Para ter acesso ao local no sambódromo carioca, é preciso fazer uma inscrição gratuita por telefone no CIAD (Centro Integrado de Atenção à Pessoa com Deficiência), geralmente é disponibilizado um convite extra para um acompanhante. Já no sambódromo paulista, é necessário comprar um ingresso pelo site da Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo.
"Os que são destinados a pessoas com deficiência têm acessibilidade total, inclusive para o banheiro. Então nunca tive problemas porque vou neles", conta Mila Guedes.
Apaixonada por Carnaval e frequentadora assídua dos bloquinhos de rua, na Vila Mariana, em São Paulo, explica que sempre evita andar nas calçadas, e acompanha o bloco fazendo o trajeto pela rua, apesar de, vez ou outra, precisar desviar de buracos.
Além das barreiras físicas, ainda é preciso lidar com os olhares preconceituosos das pessoas e atitudes que podem até parecer inofensivas, mas que revelam um preconceito velado. Frases como "você é uma inspiração", "você é uma guerreira" ou "parabéns por estar aqui" fazem parte do cotidiano das duas quando estão curtindo o Carnaval. Apesar de entenderem que não existe maldade de quem as aborda assim, Mila Guedes e Mila Correa afirmam que esse tipo de comportamento incomoda por ser um sinal de que outras pessoas as encaram de forma diferente.
"Pessoas com deficiência devem ser vistas com naturalidade, sem estereótipos de superação, porque vamos a esses locais apenas para nos divertir, não queremos ser destacados dos demais. Ninguém te dá parabéns por ir a uma festa," diz Mila Correa D´Oliveira.
Escola de samba inclusiva
Por encontrar os mesmos obstáculos da advogada e da publicitária, só que dentro dos desfiles de escola de samba do Rio de Janeiro, Paul Davies decidiu que precisava fazer algo para reverter a situação quando o assunto era falta de acessibilidade no Carnaval.
Depois de sofrer com uma hérnia de disco que o deixou sem mobilidade nas pernas durante um ano, e, por isso, não conseguir acompanhar de perto os desfiles das escolas de samba, ele criou uma escola de samba inclusiva. A Embaixadores da Alegria surgiu em 2003 e é a primeira agremiação de samba do mundo formada por pessoas com deficiência.
Fiquei em uma cadeira de rodas bem na época do Carnaval e eu não pude desfilar e nem ir ao sambódromo. Lembro que fiquei triste, em casa, e aí me veio na cabeça que pessoas com deficiência não curtiam a festa porque a festa não era preparada para elas"
Paul Davies, diretor da escola de samba Embaixadores da Alegria
Inicialmente voltada para pessoas com deficiência, hoje a escola de samba acolhe também pessoas que estão passando por situação de vulnerabilidade, como mulheres vítimas de agressão. Esse ano serão 1150 pessoas desfilando pela escola, que vai participar da abertura do Desfile das Campeãs do Rio de Janeiro, no sábado, dia 29 de fevereiro.
A Embaixadores da Alegria ainda sofre com falta de patrocínio, não possuem carros alegóricos e nem fantasias luxuosas por falta de verba."Mas ver a alegria no rosto deles e a felicidade de estar ali não tem preço e supera qualquer dificuldade," conta Paul. Esse ano o enredo da escola falará sobre algumas culturas brasileiras como o Bumba meu Boi e literatura de Cordel.
Mãe cria bloquinho de Carnaval inclusivo
Em São Paulo, 1,3 mil crianças com alguma deficiência - física, intelectual ou cognitiva - participaram de um bloquinho de Carnaval feito especialmente para elas. A diversão foi no último dia 8, na Câmara Municipal.
A iniciativa do bloquinho inclusivo foi da jornalista e escritora Andréa Werner, mãe de Theo, 11, que tem autismo. O menino foi diagnosticado quando tinha dois anos, e Andréa logo pensou em escrever um blog "Lagarta Vira Pupa" para contar sobre os desafios que enfrentava e o dia a dia educando uma criança autista. Foi assim que começou a conhecer muitas outras mães com filhos autistas, que passaram a se identificar com os assuntos tratados por ela no site. "Muitas delas evitavam sair com as crianças por causa do preconceito que sofriam," diz.
A partir daí surgiu a ideia de fazer um piquenique com mães e filhos — uma forma de incluí-los na sociedade e proporcionar momentos de lazer e interação entre famílias. A adesão foi tanta que outros eventos começaram a ser feitos, como um arraial e, agora, o bloquinho de Carnaval.
O grande desafio para quem tem algum dos transtornos do espectro autista costuma estar ligado ao som alto. "Tem muita criança que gostaria de ir a um bloquinho de Carnaval, mas enfrenta dificuldade por ter sensibilidade auditiva e as pessoas não se atentam a isso, não estão preparadas para recebê-los," explica a jornalista.
Por isso, a festa que contou foi totalmente adaptada para atender as necessidades das crianças: de rampas que possibilitam o acesso ao local até música tocando em volume baixo. No evento, compareceram crianças e adolescentes com síndrome de down, autismo, paralisia cerebral, entre outros. "Precisamos investir em eventos inclusivos, escolas inclusivas para que essas pessoas possam ir às ruas e a sociedade se acostume com a diversidade," diz Andréa.
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