Arte marcial é ferramenta para aumentar longevidade de pessoas com Down
Com problemas motores, o menino não consegue ficar em pé, imagine pular ou chutar. Mas soca com vontade o ar e solta o grito característico: "iááááá". O rapaz autista fica quieto em um canto até que é chamado para o exercício e faz cada movimento repetindo a instrução do professor. A moça com síndrome de Down tem dificuldade para se equilibrar, mas se realiza chutando um rival imaginário. "Aqui, eles percebem que os outros também têm sua dificuldade e unem forças para superá-las", resume a psicóloga Lucia Dias Mendes.
Lúcia é uma das componentes de uma das equipes que dão aulas gratuitas de taekwondo para pessoas com deficiência intelectual e motora na cidade de São Paulo. A atividade física é um dos segredos para a melhoria da qualidade de vida e da longevidade de pessoas com síndrome de Down, que hoje chegam à terceira idade graças a um trabalho interdisciplinar, que reúne pilares como medicina, nutrição, sociabilização, autonomia e esporte.
É o caso de Mônica Rocha, 25, que pratica taekwondo há seis anos. Agora, ela está próxima da faixa vermelha e é instrutora de outros colegas. "Vi um combate pelo Youtube e quis lutar. Meu pai falou que não era coisa de mulher, mas minha mãe me levou. Eu vivia na frente do computador, era muito quieta e ansiosa. Agora estou bem melhor", afirma.
As pessoas com síndrome de Down têm condições físicas diferentes do restante da população. Além dos traços faciais característicos, são mais vulneráveis a distúrbios respiratórios e podem apresentar problemas de visão, audição e tireoide. Cerca de 50% possui algum tipo de cardiopatia. Há também um espaçamento da coluna vertebral e uma redução da força muscular.
Por isso, as atividades aeróbicas são recomendadas como forma de prevenção, especialmente contra doenças cardiovasculares. Estudos apontam que o exercício físico reduz as doenças relacionadas com a síndrome, e seu efeito é ainda mais expressivo quando introduzido na infância e adolescência.
Até a década de 1970, a expectativa de vida de alguém com síndrome de Down estava por volta dos 20 anos. Hoje, a longevidade é quase equivalente à média da sociedade — 76 anos para mulheres e homens, na média. Essa melhoria também tem sido observada entre pessoas com outras deficiências intelectuais.
O Instituto Olga Kos, criado em 2007, é atualmente o responsável por dar aulas de esportes e artes para 3.000 pessoas com deficiência. Cerca de 20 mil pessoas passaram por seus cursos nos últimos 12 anos.
O surgimento da organização parece até enredo de ficção. Empresário do ramo securitário, Wolf Kos estava internado entre a vida e a morte, após uma simples cirurgia cardíaca ter resultado em uma grave infecção hospitalar. Durante o um ano em que passou internado, ele acompanhava à noite, de seu leito, a telenovela global "Páginas da Vida", que tinha entre seus personagens Clarinha (Joana Mocarzel), uma menina com síndrome de Down. Wolf prometeu a si que, se saísse com vida da jornada hospitalar, iria fazer algo por essa população. Ele se curou e cumpriu a promessa, com o instituto que homenageia sua mulher, Olga.
"Eles são mais disciplinados que os alunos comuns. É prazeroso trabalhar com eles, porque são muito carinhosos e sinceros. Eles não têm filtro, mas também não têm falsidade", define Maat Machado, assistente de coordenação de esporte do instituto.
Marcio Del Nero é outro exemplo entre os praticantes de artes marciais. Aos 35 anos, ele é faixa preta de caratê e se tornou um dos professores das oficinas. Ele começou nos cursos do instituto em 2009 e foi convidado a dar aulas em 2014.
São cerca de 300 mil os brasileiros com síndrome de Down — desses, 30 mil estão em São Paulo. A incidência da síndrome é de uma pessoa a cada 750 nascidas no Brasil. A causa da deficiência está na presença de três cromossomos 21 nas células do indivíduo. Foi essa característica que motivou a celebração do Dia Internacional da Síndrome de Down no dia 21 de março.
Além da saúde, a atividade física ajuda na sociabilização, na autonomia, na comunicação e na capacidade emocional e cognitiva de qualquer pessoa. Para aquelas com deficiência, os efeitos são ainda mais importantes.
A dona de casa Lindinalva Bernardino da Silva tem dois de seus três filhos com deficiência intelectual. São eles David, 36, e Denilson, 40. "Quando eles nasceram, eu fiquei revoltada: por que Deus fez isso comigo? Agora para mim, é normal. Não aceito quando falam que eles são doentes. Eles só precisam de atenção. Minha filha que é 'normal' é mais doida e dá mais trabalho que eles", conta.
Em uma aula, outros três irmãos distribuem socos e chutes. José Carlos tem 62. Luiz Donizete, 49. E o caçula, Vanderlei, 46. Em meio à diversidade da turma, esses atletas encaram suas limitações — parece que nem se dão conta delas.
Aos 49 anos, Claudio Ocreciano, por exemplo, treina todos os dias, seja no projeto do Instituto Olga Kos ou em uma academia perto de sua casa. Ele apresenta sua sequência de golpes no ar como se estivesse pronto pro combate. "Adoro lutar." Para ele e seus colegas, estão lutando e vencendo o tempo, os limites e o que vier pela frente.
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