Em prédio de artistas, idosos tentam encarar com leveza rotina de reclusão
Em um dos pontos mais famosos de São Paulo, a rotina não só das ruas costumava ser agitada. Desde 2014, o número 613 da avenida São João, um imóvel erguido há mais de um século, é casa de dezenas de artistas com mais de 60 anos que ocupam seus 50 apartamentos. De um dia a dia de convívio intenso, saídas para peças, shows e confraternizações no espaço, o local passou a uma rotina de reclusão nas últimas semanas.
Todos os que vivem ali estão no chamado grupo de risco do coronavírus — que inclui ainda pessoas com doenças crônicas, embora não atinja apenas essas populações, como se tem visto. Os cuidados no isolamento vêm junto a outra medida, fundamental para a saúde mental: tentar não se desesperar neste momento.
"Aqui no Palacete está cada um no seu apartamento, contato só por rede social e telefone. Eu, por exemplo, cancelei todos os ensaios. Não é férias, mas uma obrigação que tenho agora: de ficar em casa e me preservar", diz o ator e diretor Sergio Buck.
Aos 72 anos, ele continua ativo nos palcos com a peça "Palhaços e Histórias Pra Contar", parceria com a Secretaria de Educação e de Cultura do Estado, encenada em mais de 100 escolas públicas. As apresentações, por ora, estão canceladas.
Sobre a preocupação financeira, Sergio diz que sua sorte é não ter feito dívidas e seguir disposto para trabalhar. O Palacete é uma moradia popular na qual é cobrada de 10% a 12% da renda mensal de cada residente, em um contrato renovado a cada quatro anos.
"Todos os projetos estão 'congelados'. O dinheiro, que nunca é muito para a cultura, deve passar a ser menor. Estamos vivendo em tempos muito difíceis, mas vamos superar", acredita. "Uma coisa que aprendi com o tempo, hoje com 72 anos maravilhosamente bem vividos, é que a cada tropeço, você deve se levantar ainda mais forte", filosofa.
Dificuldade para ficar parada
Vizinha de Sergio Buck e síndica informal do Palacete, que tem gestão condominial da Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab), a atriz Maithe Alves, de 78 anos, tem estado impaciente.
"Olha, sinceramente, só não estou saindo mais porque está tudo fechado. Não consigo ficar parada", admite. Também diretora, ela estava trabalhando em duas peças, uma para estrear nesta sexta-feira (27) e a outra, com tema infantil, com data marcada para abril.
É natural que idosos ativos sintam mais o impacto do isolamento social. No entanto, é essencial que eles recebem a informação mais alinhada o possível com a realidade nesse momento, defendem profissionais que estudam o envelhecimento.
"Idosos precisam saber a gravidade do coronavírus, com milhares de vítimas pelo mundo, e que eles estão, sim, no grupo de risco", diz Rosa Chubaci, coordenadora do curso de gerontologia da Universidade de São Paulo (USP).
A especialista explica que amenizar os fatos não é a solução. No entanto, deve haver empatia e cuidado ao explicar a importância de se evitar o contato social, para que isso não gere casos de extrema solidão.
"Uma ligação por telefone não substitui uma visita, mas demonstra cuidado. É importante ensinar como se recebe ou faz uma chamada de vídeo, por exemplo. Manter essa 'presença' mesmo que virtual, ajuda. Liga e pergunta: 'Oi pai, oi mãe, oi vô, como você está?'. Se possível, liga de manhã, de tarde e à noite, porque se existe um caso de Alzheimer, ele pode se esquecer que houve uma ligação", explica a especialista.
Antes de decretada a pandemia, Rosa seguia com suas atividades no programa USP Aberta à Terceira Idade, com atividades gratuitas voltadas para esse público, como práticas de ioga e dança, além de oficinas de jogo de memória e origamis. Teve de mudar os planos.
Estou com mais de 700 alunos em casa e, claro, eles estão ansiosos para saber quando tudo voltará ao normal. Por isso decidimos criar um grupo no WhatsApp em que eu e outros professores passamos vídeos e atividades para fazer em casa. É uma maneira de dizer: 'Olha, estamos aqui. Não abandonamos vocês'. A tecnologia faz uma diferença absurda nesse sentido - Rosa Chubaci, coordenadora do curso de gerontologia da Universidade de São Paulo (USP)
Seguir com leveza
Foi por meio também do aplicativo de troca de mensagens que o cantor Raimundo José, de 77 anos, conversou por dois dias com Ecoa, até marcar um papo com mais calma por telefone. Conhecido pela música "Santo Forte", sucesso da década de 1970, o artista estava seguindo normalmente sua rotina de ensaios e encontros com os amigos até o último sábado (21), quando, em suas palavras, "a coisa começou a ficar tenebrosa".
Apesar de reconhecer a gravidade do cenário, ele diz estar lidando com o avanço do vírus em São Paulo com precaução e leveza. "No Palacete, a Cohab informou as recomendações básicas, de higiene e contato pessoal. De uns dias para cá, a coisa ficou feia. Está tudo fechado. Então, só nos resta seguir, mas sem desespero", diz.
Acostumado a viajar pela cidade com apresentações de piano e voz, Raimundo tinha show marcado no Piccolo Teatro, palco instalado no número 126 da rua Avanhandava. Apesar da preocupação com a sobrevivência de espaços culturais, vê que "o cancelamento é preciso". "Sempre fui responsável com a minha saúde, e não será agora que vou ser displicente. Estou aproveitando esse tempo livre para fazer o que não tinha tempo quando não parava em casa. Assistindo a filmes, lendo e revendo meu repertório", diz.
Assim como Sergio, o cantor lembra as dificuldades pelas quais já passou e busca enxergar na superação delas ânimo para enfrentar o momento. "Tive meus tempos de cantor da noite, foi uma grande escola. Fazia três, quatro shows por noite para conseguir pagar uma conta no final do mês. Foi um período difícil, mas de aprendizado. Assim como agora, tenho certeza que vamos superar mais essa. Com coragem e resiliência, sempre."
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