Como sonhar com aldeia fez cantora do AM lançar campanha para povo indígena
Um sonho com uma aldeia foi o que motivou a cantora amazonense Márcia Novo a escrever para uma amiga que mora na comunidade indígena Inhaã-Bé, na zona Rural de Manaus. De quarentena em casa, ela enviou uma mensagem para perguntar se estava tudo bem.
A resposta foi um pedido de socorro: "Mana, foi Deus quem te mandou. A gente está isolado e sem comida. Tem como tu arrumar duas cestas básicas? ".
"Claro", escreveu Márcia, que em seguida perguntou a amiga quantas pessoas vivem na aldeia, lar dos índios sateré-mawë, tariano, tikuna e mura a 1h30 de Manaus. A resposta a surpreendeu: "são 70".
A partir daí Márcia mobilizou uma campanha de arrecadação para ajudar uma das populações mais vulneráveis à Covid-19.
"Falei a ela que duas cestas básicas não eram suficientes para todos e comecei a ligar para alguns amigos, propor que fizéssemos uma vaquinha", conta Márcia. "Para minha surpresa, a adesão foi boa e a campanha foi rapidamente criando corpo".
Com auxílio dos amigos e a mobilização de fãs pelo Instagram, onde tem 16 mil seguidores, ela arrecadou R$ 2 mil, o dobro do que pretendia, em menos de uma semana. Tudo foi revertido na compra de alimentos e produtos de higiene, entregues no último sábado (4) em Inhaã-Bé.
"A sensação foi de dever cumprido e de que ainda há trabalho a fazer porque muitas famílias indígenas estão precisando de ajuda", contou Márcia.
Nos próximos dias, ela também pretende enviar comida e produtos de higiene à comunidade Parque das Tribos, onde vivem mais 700 famílias indígenas carentes em Manaus. "Deixou de ser uma campanha e virou um projeto, porque nós queremos ajudar mais e vamos continuar", disse ela.
Bem longe dali, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), outro grupo se empenha em prol da mesma causa. É uma campanha que arrecada roupas e comida para a aldeia Guarani M'Bya, na cidade de Torres, que abriga 34 famílias (110 pessoas), todas sustentadas pela venda de artesanatos.
"Por conta do isolamento e da quarentena ninguém mais conseguia trabalhar e a aldeia está passando fome", conta o professor Roger Flores Ceccon, que lidera a iniciativa. "Quando soubemos disso, decidimos ajudar".
"Em uma semana cerca de 50 pessoas fizeram doações e nós arrecadamos mil quilos de alimentos, além de produtos de higiene e agasalhos porque o inverno está chegando aqui no Sul", explicou o professor.
"Isso me surpreendeu muito, principalmente pela solidariedade para com povos que historicamente são vulnerabilizados", resumiu ele, acrescentando que vai expandir a campanha para tentar ajudar outras populações que também precisam.
Povos da floresta em risco
Na semana passada foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 em indígena do Brasil. A paciente é uma agente de saúde da etnia kokama que trabalha em Santo Antônio do Içá, no Amazonas. O caso fez soar ainda mais o alerta.
"Eu estou muito preocupado. Não quero que meus avós, bisavôs, irmãos, tios, morram", desabafou Dário Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami. "Há muitos idosos e crianças nas comunidades".
Há 896.917 indígenas no Brasil, segundo o IBGE. Eles são especialmente vulneráveis a novas doenças e em muitos casos moram distante dos hospitais em que se tratam as enfermidades levadas pelos não-indígenas.
Por isso, segundo médicos e pesquisadores, a nova doença pode devastar a população indígena tanto de comunidades mais próximas das cidades quanto de aldeias isoladas, como por exemplo o povo moxihatëtëa da Terra Yanomami, em Roraima, que já é ameaçado pelo garimpo ilegal que avança sob seu território.
"Se o vírus se espalhar entre os indígenas, o sistema de saúde vai entrar rapidamente em colapso", disse o médico infectologista Joel Gonzaga. "Não há médicos suficientes atendendo em polos de distritos indígenas, muitas comunidades sequer contam com enfermeiros, e os servidores que atendem a saúde indígena não são preparados para atendimento de casos complicados", afirmou.
Devido ao avanço da pandemia, aldeias espalhadas no país inteiro estão se isolando. A medida é eficaz para evitar a propagação da doença, mas também afeta a economia das comunidades, provocando desabastecimento.
"O isolamento interrompe o escoamento de produções, paralisa os mecanismos de troca entre as comunidades e ainda o acesso a políticas sociais, como o Bolsa Família", disse Luís Ventura do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
"Se perdurar por algum tempo o isolamento vai acarretar uma série de descontinuidades, o que leva a uma sobrecarga de recursos das comunidades e, consequentemente, seu desabastecimento", explica o antropólogo. "Daí a importância de ampliar o campo da solidariedade dentro e fora das comunidades".
Onda de solidariedade
Mas há boas notícias mesmo em tempos tristes. Ao passo que cresce o temor pelo futuro das comunidades frente ao avanço da pandemia, campanhas como as da cantora Márcia Novo e do professor Roger Ceccon arrecadam ajuda em várias partes do país.
Uma delas é organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pretende ajudar aldeias do país inteiro com alimentos, materiais de higiene e remédios.
"As epidemias são terríveis para a sociedade, mas sabemos que para os povos indígenas o impacto é ainda maior", diz o manifesto que pede ajuda à campanha da Apib. "Com o valor arrecadado vamos comprar alimentos, remédios e material de higiene para nossas aldeias".
No estado que possui proporcionalmente a maior população indígena do Brasil, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) também arrecada doações para diversas comunidades, principalmente aquelas mais isoladas.
Já em Minas Gerais, os próprios makaxali pedem apoio para comprar cestas básicas.
Só o Instituto Socioambiental (ISA) contabilizou ao menos 16 campanhas de apoio a povos da floresta na luta contra a Covid-19. A lista completa está disponível no perfil do instituto no Twitter.
Vale lembrar que em tempos de pandemia, os cuidados devem ser sempre redobrados. O novo coronavírus é altamente transmissível e tomar precauções mesmo na hora de oferecer ajuda é indispensável.
"Todas as mercadorias, pacotes, ferramentas e outros materiais que entram em territórios indígenas devem ser limpos externamente com álcool gel 70%, água sanitária a 10 %, detergente, ou com água e sabão", orientou o infectologista Joel Gonzalez. "Isso porque o vírus se mantém ativo por até nove dias em vários tipos de superfícies".
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