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'Marcas devem falar com maioria, e não minoria do país', diz empreendedora

Emília Rabelo faz pontes entre marcas e comunidades - Sergio Caddah / Divulgação
Emília Rabelo faz pontes entre marcas e comunidades Imagem: Sergio Caddah / Divulgação

Bianca Borges

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

17/04/2020 04h00

Cerca de uma década atrás, a comunicadora Emília Rabelo recebeu a missão de levar o anúncio de uma empresa de telefonia móvel a uma favela do Rio de Janeiro. Sem saber muito bem como executar a empreitada, ela conversou com os motoboys que atuavam na comunidade para entender a dinâmica da propaganda local. Afinal, como temos visto desde que se iniciou a quarentena por conta do novo coronavírus, as quebradas podem ter sistemas internos de organização muito particulares - e eficientes.

Após ter passado por diversas regiões periféricas pelo país, conhecendo suas realidades e testando formatos, Emília hoje está à frente da Outdoor Social, um negócio de impacto voltado para as classes C, D e E. Por meio de campanhas publicitárias divulgadas dentro de favelas, a empresa leva renda aos moradores, ao mesmo tempo em que ajuda a reconhecer seu potencial de consumo.

"As grandes marcas não olhavam para as comunidades. Passamos a encomendar estudos para orientar nosso trabalho. O mais recente mostra que 76% da população brasileira é das classes C, D e E. Então, como uma marca que quer ser amplamente consumida constrói seu branding para as classes A e B, que são apenas 24% da população brasileira?", questiona.

O negócio funciona assim: a marca interessada em divulgar sua campanha procura a empresa, com o intuito de apresentar seu produto ou serviço a uma determinada favela. A empresa analisa o perfil da campanha e levanta os pontos de maior fluxo dentro da região em que ela pode ser divulgada. Por fim, o morador da casa que exibe a divulgação recebe um valor pela exposição da peça.

Ao longo de oito anos, a ação gerou mais de R$ 10 milhões de renda para comunidades. "Já aconteceu de eu conversar com um morador escolhido para exibir a campanha e ele desabafar: vocês chegaram na hora certa, porque justo hoje acabou o meu gás", relata Ana Mugnos, uma das coordenadoras da empresa.

Desconstruir estereótipos e ouvir

"O Brasil é feito de pessoas trabalhadoras, são elas que constroem o país. São pessoas que, comparativamente, podem consumir unitariamente menos do que as camadas mais ricas, mas em termos de volume são as que movem a economia", diz Emília.

E nem todo mundo consome igual, não existe massa homogênea. "Pessoas de diferentes faixas salariais têm padrões de consumo diferente", diz o professor Carlos Eduardo Gonçalves, doutor em Economia pela Universidade de São Paulo, parte da equipe que alimenta a plataforma "Por quê? - Economês em bom Português".

O país tem hoje cerca de 12 milhões de pessoas vivendo em 6.329 favelas, segundo dados do IBGE e do Instituto Data Popular. Com uma campanha chamada #BrasilReal, a Outdoor Social objetiva mostrar para a indústria tanto que as comunidades são oportunidades de negócio — um levantamento da empresa aponta potencial de consumo de R$168 bi por ano —, quanto que elas têm identidades culturais próprias. Para Emilia, é necessário desconstruir estereótipos de violência, criminalidade e marginalização.

Bruna Aucar, coordenadora do Laboratório de Antropologia do Consumo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), crê que ainda persiste um imaginário negativo em torno da população de favelas e periferias, com uma maioria de narrativas que reforça preconceitos. "A grande mídia cria poucas oportunidades de desconstrução desses modelos. Campanhas como essa são importantes para tirar esses grupos da invisibilidade cultural. Se você mostra para o mercado que há um reduto potencialmente interessante do ponto de vista econômico, isso pode se converter em narrativas midiáticas que fujam desses clichês", diz ela.

O antropólogo William Corbo, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro que pesquisa o consumo entre jovens, defende que a aproximação do mercado com a população das classes C, D e E precisa compreender questões identitárias e necessidades reais. "Se o mercado deseja dialogar com esses consumidores, precisa realizar esforços para entendê-los em seus próprios termos, decifrando suas complexidades e valorizando suas particularidades culturais."

Esses segmentos podem contribuir para o mercado não apenas como consumidores, mas, principalmente, com novas práticas e conhecimentos capazes de impulsionar inovações das mais variadas. A ideia fundamental deve ser a da riqueza da diversidade, que não pode estar apenas na propaganda, mas no dia a dia das empresas

William Corbo, professor da UFRJ

Periferia não é subcategoria

A youtuber Nathaly Dias - Divulgação - Divulgação
Nathaly Dias: o que marcas fazem ainda é insuficiente
Imagem: Divulgação
A youtuber Nathaly Dias, do canal "Blogueira Baixa Renda", endossa o ponto do antropólogo. Para ela, ainda falta as empresas inserirem a realidade das comunidades no processo de criação de produtos e serviços.

"Um dia desses, dei uma consultoria para uma marca de sapatos e pontuei algumas necessidades da galera do Morro [do Banco, na zona oeste do Rio, onde mora]. Falei que os sapatos de sola de plástico eram mais funcionais para a gente, pois se não for aderente, pode escorregar na ladeira. Esse é um conhecimento que sempre tive, pois nasci e cresci em comunidades", diz ela.

A youtuber conta que vem observando um esforço do mercado publicitário em falar com populações em comunidades e periferias, mas considera o movimento insuficiente. "As empresas precisam lembrar que comemos, compramos roupas, precisamos de serviços. E parar de nos colocar como uma subcategoria... Pense no mercado do varejo de calçados: uma pessoa com muita grana entra na loja e leva muitas peças. Muitas pessoas com menos grana entram e levam poucas peças, porém são mais pessoas."