Bianca Santana: "Negros e negras sobrevivem ao fim do mundo todos os dias"
Uma escritora sem palavras. Assim a jornalista e pesquisadora Bianca Santana se define nos últimos dias. O motivo para todo esse bloqueio é só um, que tem sido comum a todos: a angústia causada pela pandemia de coronavírus e o isolamento social. A pausa forçada que a doença trouxe para a rotina de todos os brasileiros também causou efeitos negativos para ela que tem na fala a base para sua profissão e existência. Que está acostumada a encontrar justamente nas palavras de outras mulheres negras que escrevem ou escreveram sobre si o retrato mais fiel para o momento atual de uma sociedade como um todo.
"Na real, eu só estou meio desesperançosa esses dias com tudo isso que vem acontecendo. Mas eu sei que, no fundo, tenho muito para falar porque a escrita de muita gente já me ajudou muito, e sei que a minha também pode ajudar outras pessoas", diz. Sem dissimular os sentimentos negativos que tem, como o da desesperança que sente em momentos como o de agora, ela diz que senta para escrever, e é exatamente durante esse processo que consegue elaborar com mais clareza os sentimentos para, assim, conseguir aliviá-los e transformá-los em algo positivo. "Escrever desafoga, ao mesmo tempo que alimenta."
Nos últimos anos, ela tem se dedicado a produzir conteúdo relacionado ao conceito que a escritora Conceição Evaristo denominou de "escrevivência" — quando se mistura a vivência com a escrita. Basicamente, essas autoras usam das próprias experiências de vida para contar histórias que, em sua maioria, ressoam em outras pessoas.
Cria da periferia da zona norte de São Paulo, ela é escritora do livro "Quando Me Descobri Negra" (2015), em que narra em primeira pessoa e em formato de contos curtos histórias da própria vida; e organizou mais duas obras ("Inovação Ancestral de Mulheres Negras: táticas e polícias do cotidiano" e "Vozes insurgentes de mulheres negras: do século 18 à primeira década do século 21") em que reuniu textos de outras mulheres negras que também falam sobre si.
Agora, como nova colunista de Ecoa, ela conta aqui um pouco sobre o que descobriu lendo e analisando os textos dessas mulheres e o que consegue enxergar como possível ensinamento deixado por elas para ser replicado por todos em tempos como o que se vive hoje, em que é preciso cada vez mais pensar em formas de sobrevivência e coletividade. Além disso, nesta sexta (24), às 13h, a escritora mediará o UOL Debate com os líderes comunitários Anna Karla Pereira, Christiane Teixeira, Gilson Rodrigues e Isabela Souza de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco.
Bianca Santana escreverá às terças-feiras em Ecoa.
Nos últimos dias tem crescido o debate sobre conseguir ou não ser produtivo na quarentena. Você, como escritora, tem conseguido produzir? Tem escrito sobre algo em específico?
Olha, eu tenho conseguido escrever super pouco. A maior parte de textos que publiquei nesse período eu tinha escrito antes. A verdade é que eu estou meio sem palavras mesmo. Mas eu tenho feito coisas, tenho apoiado a UNEAfro em uma mobilização social de apoio às comunidades vulneráveis onde temos núcleo. Em primeiro momento, com envio de cesta básica para mais de mil e duzentas casas. Agora, estou ajudando a pensar em um projeto de saúde comunitária, porque se de fato acontecer o que todos os especialistas indicam de colapso no sistema de saúde, a gente vai precisar cuidar das pessoas em casa, e como vamos fazer isso? Então posso dizer que estou mais mobilizada em agir na prática do que na escrita. Mais reativa do que reflexiva.
Você disse que está sem palavras?
Sim, uma escritora sem palavras. Coisa de doido. Acho que esse tem sido um período de muita angústia. E sempre que leio o que as pessoas estão escrevendo eu fico pensando 'o que ainda não foi escrito sobre esse momento? Que outras palavras precisam ser escritas agora?' A sensação que tenho é que estou lendo as mesmas coisas oitocentas vezes. Eu mesma sinto que, com o pouco que escrevi nesses dias, falei a mesma coisa sei lá quantas vezes. Cansa, né? Mas esses dias dividi isso com uma amiga, e ela me disse que era exatamente isso mesmo, que a gente vai ter que falar disso repetidas vezes com novos olhares até o cenário ser diferente para ver se essa angústia passa.
Então você acha que a escrita pode ajudar em momentos de crise, de incerteza, de medo como o que estamos vivendo agora?
Sendo bem sincera agora: em dias comuns a resposta seria "sim". Nesse momento, eu estou um pouco desacreditada que se as pessoas lerem alguma coisa vai ajudar, mas eu sei que é só um momento. Porque eu sei o quanto as leituras foram e são fundamentais para mim. Não é verdade que não adianta nada. Do mesmo jeito que o que eu leio me alimenta e me ajuda, as minhas escritas podem ser útil para outras pessoas, especialmente para mulheres negras, que são sobre quem eu mais falo.
Desde sempre seu trabalho foi destinado a pesquisar e falar sobre mulheres negras: você escreveu o "Como Me Descobri Negra", e depois, organizou duas coletâneas com textos de outras mulheres. Refletindo sobre elas e a população negra em geral, o que você tira de ensinamento que pode ser aprendido por pessoas brancas, especialmente agora com uma pandemia em curso?
Organização social e rede. Nós estamos num momento em que as redes de solidariedade precisam estar ativadas, e as de pessoas negras sempre estiveram ativas. Nós só existimos em coletividade. Só fazemos desse jeito. A gente vive em comunidade há muito tempo. Eu já escrevi muito que a resposta para os desafios da sociedade está na coletividade que as pessoas negras compartilham há séculos. A noção do quilombo, da partilha, da comunidade... Ela é centenária para nós. E isso, sim, pode ser uma resposta para todo mundo, algo que pessoas brancas podem aprender. Fico pensando, se o sistema de saúde entrar em colapso, como indicam os especialistas, as pessoas vão ter que cuidar uma das outras dentro de casa, pela vizinhança, sem o aparato hospitalar. Eu acabo de concluir minha tese de doutorado sobre mulheres negras que escreveram e escrevem em primeira pessoa, sobre suas experiências. E a sobrevivência física escrita por elas ao passar dos anos é o nível mais elementar da existência porque aqui estamos falando de conseguir se alimentar bem até ter condição e cuidado para conseguir permanecer vivo. Agora isso fica mais gritante quando pensamos no coronavírus. Essa também é uma questão de sobrevivência.
Talvez seja a primeira vez que pessoas brancas tenham que pensar coletivamente em sobreviver. Negros e negras tem que fazer isso todos os dias com ou sem pandemia.
E aí entramos muito em necropolítica...
Exato. Em necropolítica, em biopoder. Tem a ver com a não condição de manter-se viva ou vivo, tem a ver com o sistema de saúde não atender pessoas negras como as pessoas brancas, tem a ver com o Estado que, além de matar, deixa as pessoas morrem. Tudo isso eu observo estudando os textos de mulheres negras desde 1770 até hoje.
E te assusta encontrar em textos antigos tantas similaridades que acontecem até hoje?
Assustar não é a palavra. Não me assusta, só mostra de forma mais evidente o que eu já sabia: que a estrutura social no Brasil não mudou. Desde o período da escravidão, os negros e negras vivem sob a mesma estrutura social. Surpreenderia se fosse de outra forma. Ser igual ao que era antes é o padrão porque é a mesma estrutura. Se você pegar textos de 1940 e publicar hoje em Ecoa, as pessoas vão achar que foram escritos hoje, em época de pandemia. Os textos de mulheres negras de 1940, 1950, falando sobre trabalho doméstico você pode publicar hoje no Facebook que vai dar no mesmo.
Nós podemos falar do meu caso, da Bianca que saiu da periferia da zona norte e hoje mora em Perdizes [zona oeste de São Paulo] porque conseguiu estudar, escrever livros? Mas essa é uma história individual. Quando você coloca essas histórias na perspectiva histórica e compara com os números de toda a população negra, vai ver que ela é mínima. Essa é a História do Brasil: ter um ou dois negros no topo não é novidade, é parte da nossa estrutura racista. Está dentro do plano, porque isso ajuda a validar o argumento de que o Brasil não é um país racista. E isso mais do que nunca está escancarado para quem quiser ver. Esses dias mesmo, saiu a notícia de que o coronavírus mata mais preto do que branco.
Mas tem-se falado muito que essa é uma doença democrática, em que literalmente qualquer um pode ser infectado. Você não acha que seja dessa forma?
Sim, é uma doença democrática, pega qualquer um. Mas a sociedade que trata essa doença não é. O tratamento não é democrático. Quem trabalha com saúde da população negra fala disso há muito tempo, e esse cenário de coronavírus escancara ainda mais isso. Essa doença até pode atingir todo mundo, mas quem vai receber diagnóstico e receber tratamento adequado?
Inclusive, essas escritas de mulheres negras que você estuda sobre possuem muitos desses questionamentos...
Sim! Elas escrevem sobre si, mas não só. Quando uma mulher negra escreve sobre si, ela escreve sobre coletividade. Ela escreve sobre as outras mulheres negras, o que significa 25% da população brasileira. Ela escreve sobre as pessoas negras em geral, o que significa 54% da população brasileira. E ela escreve sobre toda a sociedade. Tem um projeto de extermínio de pessoas negras que está em curso desde pelo menos a abolição. O Estado tem aparato para isso. Ele tem escola, hospital, polícia... Tem tudo voltado para nos matar ou nos deixar morrer. Mesmo assim, a gente resiste. Como é que, mesmo com todo esse aparato, nós estamos vivos e somos 54% da população? A gente é muito boa!
Temos táticas e estratégias de sobrevivência imensamente eficazes que vêm da coletividade. É que muitas vezes a gente não dá nome. A gente faz sem refletir e sem contar. Mas a gente carrega uma memória ancestral de sobrevivência muito preciosa. Nós, negros e negras, sobrevivemos ao fim do mundo todos os dias.
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