Covid-19 deve mudar matriz energética e forçar o olhar contra desigualdades
A pandemia do novo coronavírus atingiu em cheio a economia das maiores e das mais emergentes potências mundiais. O cenário de recessão parece se espalhar quase que democraticamente, com metas e prioridades globalmente desfeitas ou adiadas. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de 22 milhões de trabalhadores deram entrada em pedidos de seguro-desemprego. Paralelamente a essas demissões, no entanto, a gigante de vendas online Amazon anunciou a contratação de 100 mil pessoas - na perspectiva óbvia de concentrar ainda mais um nicho que já faz de Jeff Bezos, CEO da companhia, o homem mais rico do mundo.
Mas que perspectiva de planeta está em construção se a derrocada econômica de uma imensa maioria acentua concentrações de fortunas para alguns poucos? Para o diretor de economia verde da ONG ambiental WWF-Brasil, Alexandre Prado, aprender com os erros é essencial para se chegar a uma resposta minimamente sustentável - e otimista — para a pergunta.
"Essa pandemia tem nos mostrado que não é o crescimento econômico que vai trazer redução da desigualdade, é o contrário: a melhoria das questões socioambientais e o ataque direto à questão da desigualdade é que vão gerar crescimento econômico", defende.
Prado conversou com Ecoa hoje (22), Dia Mundial da Terra. A data, que é celebrada há exatos 50 anos, ganhou um contorno diferente neste 2020, em um cenário de rupturas e transformações forçadas, seja nas relações afetivas ou profissionais, em que o saldo mais perverso já soma quase 200 mil vidas humanas perdidas para o vírus em todo o mundo.
Na avaliação do especialista, é possível e factível pensar em um novo cenário de desenvolvimento elaborado a partir da redução de desigualdades. A necessidade de acesso a rendas emergenciais e à saúde e educação públicas, durante o combate à Covid-19, na avaliação dele, deixam isso explícito.
"Nossa proposta global, e não apenas na União Europeia [onde nasceu hoje uma aliança entre países e ONGs para defender uma saída verde à crise econômica do coronavírus], é que se está construindo um novo modelo de economia e que esses olhares sejam recompostos olhando uma economia mais verde e distributiva, mais igualitária. Uma das propostas é: para que serve a economia? Ela deve servir os cidadãos, ou eles devem servi-la? Obviamente que esse é um falso dilema, porque ele é provocado - na verdade, a economia não existe sem pessoas", define.
Crise atual deve abrir novas perspectivas energéticas
Conforme o diretor, mesmo o atual processo de crise social, sanitária e econômica decorrente do cenário de pandemia tem indicado ser melhor que se faça um "lockdown" rápido na cadeia produtiva, sem riscos de aumento de contaminações e doentes, a fim de que o processo de fechamento não implique em idas e vindas - como ocorreu, por exemplo, na Itália, um dos epicentros da Covid-19 no mundo.
Por outro lado, o especialista afirma ver na crise também indicativos que devem impactar positivamente o planeta - sobretudo no que se refere às novas fontes de energia.
Sobre isso, Prado citou o colapso dos preços do petróleo nos Estados Unidos, esta semana: a cotação do barril do tipo WTI, referência para o mercado norte-americano, entrou no terreno negativo pela primeira vez na história nesta segunda-feira.
"O que nos parece é que processos anteriores à crise e, que tinham uma tendência de acontecer, se aprofundaram, seja para bem, seja para mal. No caso do petróleo e de outros combustíveis fósseis, o que se indicava no mundo é que as empresas de exploração deveriam fazer 'fade out', e elas mesmas indicavam isso. Agora esse processo foi obviamente adiantado. Pessoas e fundos que olhavam com muita desconfiança o setor de fósseis vão olhar com muito mais desconfiança agora", acredita Prado, citando que a abertura de capital do setor, em fevereiro passado, na Arábia Saudita, atraiu muito mais investidores do Oriente Médio, vinculados a monarquias, do que grandes fundos de investimento.
"O que me parece é que estamos tendo a oportunidade de olhar para a energia. Todo um outro setor vinculado aos fósseis, como a solar e a eólica que estavam sendo valorizadas, agora tem uma tendência de ampliação. Esses parecem ser bons cenários para trabalhar no pós-pandemia", diz Prado.
Aposta brasileira deveria ser em infraestrutura urbana e PPPs
No caso do Brasil, o diretor aponta que o investimento mais focado em infraestrutura urbana - especialmente por meio de PPPS (Parcerias Público-Privadas) - do que em grandes obras de longo prazo de retorno financeiro, como rodovias, também são uma alternativa de economia verde no pós-pandemia.
"Quando houve a crise hídrica em São Paulo [em 2014], por exemplo, ficou-se apenas no mais imediato, que era ampliar o sistema de abastecimento de água. Mas nada foi feito sobre os 40% da nossa água que vão para o ralo ou sobre o aumento de capacidade de nossas bacias. É preciso achar um viés de ações de infraestrutura urbana que beneficie a população como um todo, e não só o investidor privado", recomenda.
Ações que alavanquem a economia sustentável e mirando, primeiramente, um bem-estar mais igualitário passam também por um novo olhar a realidades aparentemente não tão próximas. No entendimento do ambientalista, esse é um ensinamento da pandemia que precisa ser levado a sério.
"Temos que olhar para as desigualdades; não faz sentido a gente ver o que acontece em Manaus, por exemplo [a capital do Amazonas passa por um grave colapso sanitário], e pensar que, como dizia [o ex-ministro da Fazenda e economista] Delfim Netto, 'tem que fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo'. O bolo cresceu, cresceu, mas o panorama seguiu muito desigual. Precisamos aprender com nossos erros: não temos que aumentar o bolo, mas dividi-lo melhor", compara. "Olhar para o processo de reconstrução da sociedade pelo viés de redução da desigualdade: isso é oportunidade", reforça.
Brasil: modelo de desenvolvimento econômico ainda mira século 20
Prado disse ainda esperar que o planeta saia da crise diferente do que entrou - uma vez que, acredita, "não dá para sair desse processo tão duro e voltar para o que vigorava nos últimos três ou quatro anos".
Se fizermos um plano de reconstrução baseado na economia do século 20, vamos murchar em termos de importância econômica global. A projeção de futuro no mundo é de uma sociedade mais igualitária, com energias mais limpas em processo de ganho de força. Tínhamos que estar olhando para isso no Brasil, temos excelentes oportunidades. Mas, infelizmente, acho que não vamos saber usá-las.
Alexandre Prado, diretor de economia verde da WWF-Brasil
O motivo para a perspectiva menos otimista sobre uma economia verde em relação ao próprio país tem uma explicação: segundo o diretor, dificilmente esse deve ser o norte do comando político do país pelos próximos cinco ou seis anos. Segundo ele, isso é resultado da pressão de setores mais fortes e influentes no espectro político, como o agronegócio.
"Acredito que esses setores apostarão seu último suspiro por cinco, seis anos. É aquela ideia de 'vamos fazer o caixa girar a nosso favor enquanto temos tempo' - e o agronegócio é um dos mais agressivos nesse aspecto. Porque eles sabem que, daqui a dez anos, não tem muita perspectiva de crescimento [já que novas matrizes de desenvolvimento têm ganhado protagonismo pelo mundo]. Agora, o Brasil está acelerando - mas apostando em um modelo de crescimento econômico do século 20, como defendido por esses setores", destacou Prado, para completar: "Se o governo olhasse de fato para o século 21, [ao invés de atender aos interesses econômicos de ruralistas] não cortaria um pau de árvore, porque nosso futuro vem das florestas. Olhar para o futuro se baseando em experiências passadas só deveria valer para corrigir erros, não para insistir neles."
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