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'Nós do Morro nos permitiu sonhar': conheça o grupo teatral que formou Babu

Os atores Micael Borges e Babu Santana, ambos formados pelo grupo do Vidigal - Arquivo Pessoal
Os atores Micael Borges e Babu Santana, ambos formados pelo grupo do Vidigal Imagem: Arquivo Pessoal

Diana Carvalho

De Ecoa, em São Paulo

26/04/2020 04h00

"Quantos diretores de cinema que saíram da favela você conhece? E quantos homens pretos que já chegaram à reta final de um reality show?"

O questionamento do ator Luciano Vidigal, 38, surge para explicar a importância que o grupo de teatro Nós do Morro teve em sua vida e na vida do amigo de infância, Babu Santana, 40. As frases foram ditas em entrevista realizada antes da eliminação do ator, na noite de sábado (25), que o deixou em 4º lugar no Big Brother Brasil 20.

Babu tem no braço uma tatuagem em homenagem à companhia criada pelo ator e diretor Guti Fraga em 1986 no Rio. Na época, Luciano, com 10 anos, acompanhava a mãe que trabalhava como empregada doméstica para sustentar ele e mais cinco irmãos. Uma das casas em que ela fazia faxina pertencia ao ator Otavio Muller, que vivia o personagem Sardinha na novela "Vale Tudo" (1988, Rede Globo).

"Minha mãe falava: 'Olha, filho, o Otavio é legal, é gente boa, mas ele tem umas esquisitices, viu? Não liga'. As 'esquisitices' eram passar o dia inteiro falando sozinho, gesticulando e decorando texto. Lembro de ficar atrás da porta da sala prestando atenção em tudo que ele fazia. Aquilo me marcou, e cresci com uma curiosidade na cabeça: 'Qual será essa de ser ator?'", lembra Luciano.

Alguns anos depois, ele procurou um grupo perto de sua casa, no Vidigal, que oferecia aulas de teatro de graça. Foi lá, no Nós do Morro, a sua a primeira experiência em cima dos palcos. "Não parei mais. Mesmo trabalhando como trocador de van, carregando sacolas na feira, eu não deixava de ir aos ensaios e me apresentava cada vez mais em espetáculos. Após 15 anos de grupo, tive a oportunidade de ter aulas de roteiro e história do cinema com a autora Rosane Svartmann. Aí comecei a desenvolver o meu trabalho com audiovisual."

Guti Fraga e Luciano Vidigal - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Guti Fraga (esq.) e Luciano Vidigal (dir.)
Imagem: Arquivo Pessoal

Em 2005, Luciano roteirizou e dirigiu o primeiro curta, "Neguinho e Kika", que contou com a participação de Babu no elenco. A produção foi um marco em sua vida. Na sequência, foi convidado por Cacá Diegues para dirigir "5 x Favela". Após ter trabalhado em grandes produções, como "Meu Nome não é Johnny (2008)" e "Tropa de Elite 2 (2010)", hoje Luciano concilia o trabalho de diretor de cinema e professor de teatro.

"O Nós do Morro sempre buscou a cultura do 'multiplicador', que transforma alunos em professores. A ideia é multiplicar a arte. É preciso investir nas favelas. São potências. É muito caro para quem mora em comunidade consumir cultura, é caro ir ao teatro, ao cinema. É longe. Então, é preciso levar a arte para dentro das favelas também. É por isso que hoje estou aqui e sou diretor. É por isso que temos o talento grandioso do Babu. Porque o Guti subiu o Morro, olhou para aquelas crianças e jovens, que um dia fiz parte, e enxergou talento. Ele percebeu ali uma potência."

Para Luciano, a participação de Babu Santana no BBB diz muito sobre o trabalho do grupo aqui fora.

Mais do que uma formação profissional, o Nós do Morro nos fez crescer como seres humanos. Aprender a respeitar o outro. Entender as diferenças. Ninguém faz nada sozinho. Para quem vem do teatro, isso é muito forte. Você não pode ter uma atitude que prejudique o trabalho de todos. No Vidigal, a gente aprendia a fazer tudo: figurino, cenário... Ator era assistente. O coletivo sempre foi mais importante do que o individual

Luciano Vidigal, cineasta e professor de teatro

"A gente ensaiava e quebrava pedra"

A atriz Luciana Bezerra, 44, hoje coordenadora do Nós do Morro, relembra um dos momentos de resiliência do grupo, que contou com a ajuda da comunidade para construir o que viria se tornar o primeiro teatro do Vidigal.

"De 1990 a 1992, quando entrei na companhia, ficamos pulando de lugar em lugar. Ocupávamos alguns espaços, dentro de escolas, mas logo tínhamos de sair. Até que o Guti decidiu se 'abrigar' em um anexo da Escola Municipal Almirante Tamandaré. Era um espaço sob pilotis, em um barranco, e ele disse: 'Vamos construir um teatro aqui'. Até hoje, o Guti costuma dizer que a gente ensaiava e quebrava pedra. Tenho certeza que muitas pessoas pensam que isso é no sentido figurado, mas não é. Era a mais pura verdade", diz.

Os atores Babu Santana, Cintia Rosa, Roberta Rodrigues e Luciano Vidigal - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Da esq. para a dir., os atores Babu Santana, Cintia Rosa, Roberta Rodrigues e Luciano Vidigal
Imagem: Arquivo Pessoal
Enquanto produziam o espetáculo "Machadiano", montagem com três histórias de Machado de Assis, alunos e professores contavam com a ajuda de todos da vizinhança para colocar o teatro de pé. "Era um espaço todo cimentado e tinha muitas pedras. Inclusive, até hoje, na nossa cabine de luz e som, ainda tem uma pedra enorme, que não conseguimos quebrar."

Hoje, o Teatro do Vidigal tem capacidade para 60 pessoas e se tornou o coração do Nós do Morro. "Foi lá que estreamos, ganhamos uma identidade e conquistamos nosso primeiro Prêmio Shell com a peça 'Machadiano'", relembra a atriz.

Apesar das adversidades do início, a partir de 1992 e até meados de 2010 foi um período promissor para a companhia, que contava com o apoio da Petrobrás. "Chegamos a ter 18 turmas, com sete, oito disciplinas. Os alunos faziam circo, canto, dança, interpretação, inglês. Era muito potente. Mas não dá pra fazer tudo isso sem apoio. E, a partir de 2011, com a crise na Petrobrás, perdemos o patrocínio", conta.

Atualmente, o Nós do Morro conta com sete turmas e todo o corpo de trabalho do grupo é voluntário. "Nossa maior dificuldade é que somos uma escola continuada, e políticas públicas para a cultura trabalham para projetos, que não duram mais de um ano. Não existe um edital que viabilize um projeto por três anos ou mais. E nós, mesmo com essas barreiras, já estamos perto de completar 34 anos de existência", conta.

"O Nós do Morro me permitiu sonhar"

Micael Borges, 31, foi um dos jovens que aproveitou esse momento em que o grupo recebia apoio. O ator, que cresceu e morou no Vidigal, fez parte da segunda geração da companhia, junto aos atores Thiago Martins, Roberta Rodrigues e Jonathan Haagensen.

"O Nós do Morro foi um divisor de águas na vida de muita gente. O intuito do grupo nunca foi criar celebridades ou deixar alguém famoso, mas sim levar cultura para crianças que não tinham acesso a nada. Quem vive em comunidade sabe, todo dia há situações que fazem com que você se afunde, te colocam para baixo e tiram os seus ideais. O Nós do Morro me fez manter vivo o sonho que eu tinha desde pequeno, de trabalhar com o que gosto e dar uma vida melhor para a minha família", diz Micael.

Durante a adolescência, Micael conviveu com atores que já levavam o nome do Nós do Morro para fora do Vidigal, como Babu."Ele sempre foi um espelho para todos nós. Quando eu estava começando, ele já tinha experiência no cinema e na TV. Ele sempre dizia: 'Continua estudando que um dia vai pintar uma oportunidade para você'", conta.

Depois de participar de "Cidade de Deus (2002)", Micael integrou o elenco de "Malhação" (Globo), em 2009. O ator reconhece, no entanto, que apesar das semelhanças de vida com Babu, as portas nem sempre se abrem da mesma maneira. "Fico triste quando vejo pessoas acusando o Babu de vitimismo. Isso é um absurdo. Mesmo ele tendo feito muitos filmes, as pessoas não conhecem a realidade. Nós saímos do mesmo lugar, do Vidigal, e tenho plena consciência de que, para trabalhar na TV ou no cinema, o meu perfil me ajudou a ter mais oportunidades", afirma.

O ator Babu Santana mostra tatuagem que homenageia o Nós do Morro - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Babu: tatuagem que homenageia Nós do Morro
Imagem: Arquivo Pessoal
Para o ator, o papel da mídia em reforçar estereótipos é o que limita o trabalho de um ator. "E não estou falando só de cor de pele. Dono de morro, bandido, traficante... O Babu não é chamado para interpretar um dono de empresa ou um professor. Percebe? É por isso que ele, como muitos que saíram do Nós do Morro, seguem me inspirando. São atores e atrizes que tomam muita 'porrada' e continuam com a mesma garra, a mesma paixão pela arte. Isso vale mais do que qualquer prêmio de reality show. O amor pelo que você faz e o respeito de quem vem de onde você veio", finaliza.