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Psicólogo: Status de herói gera pressão, e agentes da saúde pedem cuidados

Equipe médica em hospital temporário de Wuhan, na China - Xinhua/Fei Maohua
Equipe médica em hospital temporário de Wuhan, na China Imagem: Xinhua/Fei Maohua

Diana Carvalho

De Ecoa, em São Paulo

28/04/2020 04h00

Super-heróis não ficam doentes. Ao mesmo tempo em que esse status simboliza uma maneira de exaltar e homenagear profissionais de saúde que estão trabalhando na pandemia da Covid-19, a "função heróica" tem capacidade para gerar uma pressão psicológica ainda maior.

"Quando te colocam na posição de super-herói, isso acaba gerando uma expectativa muito grande: 'Tenho que estar bem, não posso falhar. Tenho que dar conta do meu trabalho'. E veja, enquanto toda a população está sendo estimulada a ficar em casa, diminuir o ritmo, evitar sair, profissionais de saúde estão no caminho contrário, tendo, inclusive, uma carga de trabalho ainda maior. Então, ao mesmo tempo em que existe uma exigência enorme em dar o melhor sempre, existe também um desgaste muito grande, inerente a qualquer ser humano nessas condições", diz Felipe Ornell, psicólogo clínico e doutorando no Departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS.

Segundo a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, até domingo (26), 3.106 profissionais da saúde estavam infectados por coronavírus na cidade. Já o Coren-SP (Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo) divulgou que, de 5.451 profissionais de enfermagem de todo estado, 80% dos afirmam ter medo de atuar nos serviços de saúde ligados a Covid-19. Para o especialista, a conta é simples. Aumenta o número de doentes, diminui o de profissionais e o resultado é um só: esgotamento físico e mental.

"Existem vários fatores que levam a isso, a esse desgaste. O primeiro é o próprio risco de contágio. Muitos profissionais sentem-se inseguros ao cuidar de pacientes infectados por um vírus que é novo e que ainda pouco se sabe sobre protocolos clínicos ou tratamentos. Outra questão é que, para além do trabalho do hospital, o profissional tem uma vida lá fora. Quem não mora sozinho está vivendo afastado. Sem poder ter contato com os filhos, com o marido, mãe, pai, irmãos. O apoio social, o estar perto de pessoas que você gosta em momentos de crise, é fundamental. Sem isso, é normal que o seu rendimento caia e que você se sinta ainda mais fragilizado".

Sono é termômetro

A pandemia de coronavírus e o isolamento social, por si só, geram níveis elevados de ansiedade e depressão na população em geral. Em profissionais de saúde, a sobrecarga de trabalho e os sintomas relacionados a estresse decorrentes desta situação, pode torná-los ainda vulneráveis ao sofrimento psicológico, que muitas vezes passa despercebido em meio a correria do dia a dia.

Muitos profissionais de saúde relatam que estão funcionando bem no trabalho, mas ao mesmo tempo se sentem extremamente cansados, não conseguem dormir ou manter o sono durante a noite. "Uma das primeiras principais maneiras de perceber que o nosso corpo, nossa mente, está fragilizado, é a falta de regularidade no sono. Colocar a cabeça no travesseiro é abrir espaço para outras preocupações. Então, as pessoas começam a se dar conta de que não estão dormindo porque estão muito ansiosas, porque estão com medo de se infectar, contaminar a família", afirma o psicólogo.

O psicólogo e pesquisador em saúde mental Felipe Ornell - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Felipe Ornell: Saúde mental no Brasil foi construída de forma segregadora, e pandemia oferece chance de mudar
Imagem: Arquivo Pessoal
Para o especialista, o apoio emocional é o que irá ajudar esse profissional a seguir a sua rotina e entender que se sentir angustiado e ansioso é normal neste momento.

No artigo "O impacto da pandemia de COVID-19 na saúde mental dos profissionais de saúde", Felipe e outros especialistas defendem que "profissionais de saúde que estão em contato direto com pacientes infectados tenham sua saúde mental regularmente examinada e monitorada, principalmente em relação à depressão, ansiedade e ideação suicida". Da mesma forma, é essencial identificar profissionais com histórico de exposição a fatores de risco psicossociais.

O estudo mostra ainda que, durante o surto de Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS) em 2003, 18 a 57% dos profissionais de saúde experimentaram graves problemas emocionais e sintomas psiquiátricos durante e após o evento.

Chance de mudar olhar para a saúde mental

O Ministério da Saúde vai abrir a partir de maio um canal telefônico destinado a médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas, biomédicos e farmacêuticos envolvidos nos atendimentos de coronavírus.

O projeto será realizado em parceria com o Hospital das Clínicas de Porto Alegre e contará com uma equipe formada por profissionais da psicologia e psiquiatria, que realizaram os atendimentos por meio de videochamadas. Havendo a necessidade de intervenção farmacológica, o profissional será referenciado para atendimento presencial.

A iniciativa é vista pelo especialista da UFRGS como de extrema importância. Segundo ele, é preciso entender que distância física não é sinônimo de distância emocional, e que o isolamento social deve ser diferenciado da solidão.

Grandes soluções surgem diante de uma crise. Iniciativas que buscam, de alguma maneira, aliviar danos psicológicos, devem ser estimuladas em termos de pesquisa, prevenção e tratamento. Isso coloca em jogo o déficit histórico do Brasil com relação a saúde mental, que foi construída de uma forma segregadora, pautada na exclusão e em internações em sua maioria hospitais psiquiátricos

Felipe Ornell, psicólogo clínico e pesquisador na UFRGS

Para ele, "esse distanciamento e a contemplação da questão mental como loucura, fraqueza moral, como uma coisa feia, gerou uma negligência pública na construção de estratégias que ainda fez com que se estabelecesse um preconceito contra quem procura ajuda. É importante que a população se conscientize de que sofrer, se sentir deprimido, ter uma crise de ansiedade, não significa fraqueza. É preciso normalizar o tratamento para a depressão, para a ansiedade, assim como normalizamos qualquer outro tratamento médico, como uma diabetes", conclui.