Como a agorafobia fez artista olhar e registrar o mundo isolada em casa
Jacqui Kenny é uma fotógrafa da Nova Zelândia que nunca fotografou — nem sequer pegou em uma câmera. É também uma viajante que tem um perfil no Instagram dedicado inteiramente a fotos de lugares ao redor do mundo. Porém, poucas foram as vezes em que ela subiu em um avião com destino a outro país.
Na verdade, ela não costuma andar nem de carro, ônibus, trem ou metrô. Mesmo assim, no dia 30 de março, esteve fotografando cavalos na Mongólia. Anteriormente, fez registros de homens arrumando uma parede no México, pessoas cuidando de patos na Rússia e crianças tomando banho em uma piscina de plástico no meio de uma rua em Callao, cidade próxima a Lima, no Peru.
Esses são alguns poucos exemplos das mais de 40 mil imagens de países que, aos 44 anos, ela visitou sem pôr o pé para fora de casa. Do Brasil ao Japão, as "viagens" foram realizadas por meio de um computador com acesso à internet e ao Street View, recurso do Google que disponibiliza vistas panorâmicas de diversos locais do mundo.
Desde 2016, ela vem coletando cenas que encontra navegando pela ferramenta. Apesar de hoje ter colhido frutos com a ideia de compartilhar recortes do que encontra no Street View — em 2021 ela lança um livro, por exemplo —, o projeto começou por motivos menos positivos.
Quando tinha 20 anos, Jacqui começou a sofrer com casos de síndrome do pânico. Uma desordem de ansiedade em que o sintoma principal é uma sensação aguda de medo irracional, sem que haja motivo específico para isso. Em decorrência desse quadro, a maioria das pessoas acaba desenvolvendo agorafobia, que em resumo significa medo de sair de casa ou de ficar exposto em locais sem conseguir voltar para espaços seguros. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a síndrome acomete entre 2% e 4% da população mundial. Jacqui faz parte da estatística.
"Comecei a ter muitos ataques de pânicos em situações diferentes. Eu só fui diagnosticada dez anos depois. Ficava com muito medo de ir para os lugares. Parei de ir a supermercados, reuniões de trabalho e eventos sociais. E a lista de lugares que eu estava evitando só crescia", conta, em entrevista à Ecoa.
Em um desses momentos em que esteve mais reclusa, entrou na ferramenta. Despretensiosamente, escreveu "Brasil" e começou a "passear" por ruas brasileiras. "Eu comecei minhas viagens pelo Street View no Brasil, que é um país ao qual eu nunca fui de fato. Mas eu lembro de ter ficado tão encantada com as cores e arquitetura que eu quase sentia a energia do país através da tela do meu computador. Me deixou muito empolgada e meio viciada também", diz.
Tão viciada que passou a ficar cerca de 18 horas no computador pesquisando e conhecendo lugares ao redor do mundo. A imersão deu origem ao projeto "The Agoraphobic Traveller" (A viajante com agorafobia, em inglês).
Ajudando o mundo a viver isolado
Em andamento há quase quatro anos, o projeto tomou outra dimensão nos últimos dois meses. O motivo é um só: o isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus. Muitas pessoas começaram a procurá-la para entender melhor como viajar pelo mundo sem sair de casa, e quais as coordenadas de determinados países que ela já frequentou. Para Jacqui, a sensação é a de que cada vez mais as pessoas sentem falta de ver o que está "lá fora".
"Tem algo muito frustrante em querer sair de casa e não poder. As pessoas ainda querem se sentir conectadas com o mundo, mesmo isoladas. Nós estamos vivendo um momento sem precedentes, e estamos revisitando o que pensamos sobre como nos relacionamos com o mundo."
Não poder sair de casa por estar em quarentena, apesar de necessário, é ruim. Não conseguir sair de casa por ter medo de fazer isso também. Jacqui vive as duas experiências. No entanto, a rotina dela não mudou com a pandemia. Ela está acostumada a trabalhar de casa e já utilizava apenas as redes sociais para conversar e ver os parentes que deixou na Nova Zelândia. Apesar disso, ela diz compreender a frustração que as pessoas estão sentindo agora.
As pessoas que a procuram querem saber quais países "visitar", ou seja, os melhores roteiros de viagem pelo Street View. Se você ficou curioso, a resposta dela é a seguinte: Peru, Chile, Estados Unidos, Mongólia, Brasil, Bolívia, Senegal e Tunísia. Para Jacqui, apesar de não ser a forma ideal e mais completa de visitar um país, essa foi a maneira que ela encontrou de se reconectar com a ideia do que é real. Afastando, aos poucos, o sentimento de estar sozinha.
Redescobrindo o mundo
Todas as fotos que Jacqui tira no Street View são de momentos solitários. Quando alguma pessoa aparece, ela está sempre só. A maioria são de construções ou situações em locais isolados. A preferência é por cenários em meio ao deserto porque, para ela, são esses locais que "fascinam, mas dão muito medo", por não possuírem rotas fáceis de fuga.
"São todas imagens que refletem o que eu estava passando e sentindo. É tudo abstrato, solitário? São imagens da rotina que não parecem encaixar com o 'mundo real'. E as cores que são em tons mais claros, o que transmite uma sensação de tranquilidade, relaxamento."
Apesar de ter encontrado nesse projeto uma forma de abraçar e expressar sua criatividade, a maior transformação foi na maneira como ela via o mundo. Por isso, Jacqui aconselha o exercício de visitar lugares pela Internet com olhar mais atento, tentando achar espaços que se relacionam ou se parecem. Mesmo que distantes. "Eu acho que ver o mundo por uma tela te dá a possibilidade de ver o macro. Assim pude começar a perceber muitas similaridades entre os lugares", diz.
A neozelandesa diz que, sem ter de se preocupar com fronteiras ou restrições de viagem, encontrar similaridades em países tão distantes a fez ver como, de fato, as pessoas e culturas estão conectadas.
Nessas viagens, um local conhecido, no entanto, se destacou. "Eu aprendi a apreciar muito minha região. Me ensinou a respeitar o que está perto de mim. E, obviamente, me fez aproveitar mais as pequenas coisas. Me ensinou que eu não preciso visitar para lugares super diferentes e distantes para descobrir mais sobre mim", resume.
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