Para diminuir desigualdade, empresa reforma casas em comunidade de Recife
Desde janeiro, a cozinha da casa da assistente social Marlene Muniz, 33, em Camaragibe, na região metropolitana de Recife, ganhou "ares de revista de decoração." As paredes sem reboco receberam cimento e aplicações em cerâmica. Os sistemas hidráulico e elétrico foram restaurados, e o forro melhorado. A área de serviço foi delimitada com novas instalações para o tanque e para a máquina de lavar.
"A cozinha precisava de uma reforma urgente, até pela questão da salubridade. Não conseguíamos fazer as refeições lá, como não tinha reboco entravam bichos de fora. Nós comíamos no quarto", lembra Marlene Muniz.
Depois da reforma, o novo cômodo até aproximou a família. "Sentamos à mesa para tomar café, fazer as refeições. A cozinha é o coração da casa, é onde preparamos os alimentos. Agora ficou com cara de revista, comecei até a colocar minhas plantas."
Marlene reforça que o capricho no acabamento foi um dos diferenciais da obra que só foi possível porque custou R$ 4 mil, e parcelada, "coube no orçamento".
O trabalho foi executado pela Dona Obra, empresa criada no ano passado, que reforma casas de comunidades de baixa renda em Recife. O serviço é vendido em forma de kits com o nome do cômodo e inclui projeto, material de construção e mão de obra especializada, ao custo de R$ 4 mil a R$ 6 mil. Os valores podem ser parcelados em até dez vezes.
As arquitetas Denise Durey, 40, e Giuliana Lobo, 28, abandonaram carreiras em construtoras e decidiram investir no novo negócio por causa dos dados alarmantes sobre desigualdade social em Recife e como isso se reflete na habitação.
Estima-se que 53% da população da capital pernambucana viva em comunidades pobres e áreas de assentamento, segundo levantamento LAB Moradia no Centro - Recife (PE), feito em 2018 pela ONG Habitat para a Humanidade Brasil. O estudo apontou ainda que estas comunidades ocupam 35% do território da cidade.
De acordo com Denise, com base em dados estatísticos do IBGE, é possível afirmar que aproximadamente 500 mil pessoas estejam morando em casas construídas de maneira informal e que necessitam de alguma melhoria em Recife.
Trabalhava com arquitetura tradicional e sempre tive essa inquietação sobre de que maneira poderia dar respostas sobre desigualdade social no quesito habitação. As pessoas não têm acesso à moradia digna.
Denise Durey, 40, arquiteta
"Mergulhamos no universo de negócios de impacto social e entendemos que era possível trabalhar resolvendo aquele problema que era nossa inquietação", complementa Denise. As sócias se conheceram em um projeto voluntário com propósito semelhante.
O que falta é acesso a serviço de qualidade
Com a motivação e capacidade técnica, Denise e Giuliana foram validar a ideia da empresa em um projeto de incubação do Porto Social no final de 2018. Foram 265 projetos inscritos para 35 vagas, e a Dona Obra garantiu uma delas. O Porto Social é uma organização que capacita iniciativas sociais e oferece apoio e mentoria para lançá-las ao mercado.
As sócias queriam criar um negócio de impacto social que pudesse ser rentável e não tivesse de batalhar por recurso anualmente para sobreviver, como ocorre com a maioria das ONGs.
A fase inicial para a estruturação da empresa foi a pesquisa de campo em Recife, para entender melhor os percalços da habitação in loco. Elas já haviam conhecido experiências em São Paulo, mas precisavam aprofundar a compreensão da realidade local. Entre abril e junho de 2019, Denise e Giuliana visitaram oito comunidades de baixa renda recifenses.
"Elaboramos questionários e fizemos pesquisas guiadas. Conversávamos com os moradores, avaliávamos a estrutura física da casa, tentando entender quais eram as patologias recorrentes", diz Denise. Giuliana lembra que elas também observavam como era a ventilação das residências, e se o imóvel acomodava bem a quantidade de moradores. Mas, apesar de alguns problemas serem aparentes, muitas vezes os moradores não se queixavam porque não tinham outras referências.
O resultado da pesquisa mostrou que os moradores das comunidades investiam dinheiro em reformas de suas casas, e que obras de melhorias eram feitas constantemente. O problema não era a ausência do poder aquisitivo, e sim a falta de acesso a serviços de qualidade, segundo as arquitetas.
Ainda de acordo com a análise de Denise e Giuliana havia questões como desperdício de material de construção e retrabalho por sub ou superdimensionamento dos espaços construídos e a presença de ambientes insalubres, com infiltrações, úmidos, com falta de ventilação, entre outros.
"Percebemos que gastavam muito dinheiro, mas às vezes a obra ficava inacabada ou sem boa qualidade por falta de um olhar técnico. Entendemos o poder de consumo e as necessidades de reforma. Saímos com o produto e com a empresa constituída. Surgia a Dona Obra", lembra Giuliana.
Mão de obra feminina
Outro braço da empresa é qualificar mão de obra feminina para a execução dos trabalhos. Para isso, a Dona Obra está firmando uma parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Nacional (Senai) de Pernambuco tanto para encaminhar as profissionais formadas em cursos de construção civil já oferecidos pela instituição, quanto para formatar um que atenda às necessidades específicas da empresa.
"Não podemos abandonar esse ponto, porque é fundamental para o nosso negócio empoderar e capacitar as mulheres da periferia para trabalhar com construção", diz Denise, que quer contar com mão de obra feminina em atividades como assentamento de tijolo e piso.
Enquanto a empresa não tem equipe própria, terceiriza as obras para um empreiteiro terceirizado. A equipe é composta por uma mulher.
Pausa pela Covid-19
Atualmente, as obras realizadas pela Dona Obra estão paradas por conta da pandemia do coronavírus, mas havia três trabalhos em fase de execução. Além da cozinha da casa em Camaragibe, a empresa também já reformou um quarto e um banheiro de uma residência no Passarinho Alto, em Recife.
Não havia reboco no quarto e era comum a entrada de escorpiões, o que preocupava muito a família, já que uma das moradoras é deficiente visual. "Minha vó foi perdendo a visão ao longo dos anos. O quarto também não tinha ventilação, passamos muito tempo dentro de casa, e é ruim quando ela não é confortável. Com a reforma, o espaço ficou maior e ela ficou muito feliz", diz Danielle Queiroz de Alencar, 31, uma das moradoras da casa reformada.
Embora a empresa exista oficialmente desde o ano passado, ainda não houve investimento em estratégias de marketing e divulgação para angariar clientes. As arquitetas explicam que nesta fase os produtos ainda estão sendo "validados", uma forma de entender se o que foi planejado em relação ao tempo, material utilizado, entre outros fatores, acaba se consolidando na prática.
Para as empresárias, esse "background de organização e planejamento" é prioridade. "Trabalhamos em construtoras consolidadas e quisemos trazer isso para o nosso negócio, que é o negócio das nossas vidas. Ele foi feito para dar certo e respeitaremos cada etapa desse processo. É idealismo com pragmatismo. Os números virão, mas a partir da finalização dessas obras", afirma Denise.
As arquitetas ainda estão estimando dados como quantas famílias desejam impactar e qual a quantidade de obras mensais necessárias para que se tenha lucro. Denise reforça que como o produto é destinado às famílias de baixa renda, o "ticket é baixo, por isso é necessário ganhar na escala."
Para ela, o grande estímulo do trabalho não é lucro, embora seja fundamental para manter a empresa. "Para atuar na periferia, queremos resolver de fato um problema social. Se não fosse esse o motivador, teríamos continuado na arquitetura tradicional. Você ter o reconhecimento de poder trabalhar na periferia e cuidar do básico, da moradia digna. O azulejo na parede é a felicidade da pessoa. O benefício vem de outra medida", afirma Denise.
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