Meio ambiente e educação podem sofrer com ações 'escondidas' por pandemia
Há quanto tempo você tem a sensação de que, à exceção de uma quase permanente crise política no governo do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil só fala do novo coronavírus e de uma gama diversificada de assuntos relacionados a ele? Não é para menos: o país já perdeu 6.750 vidas para a Covid-19, e, de acordo com um estudo realizado pelo Imperial College de Londres, tem a maior taxa de contágio pelo vírus em um total de 48 países.
Nesse contexto, notícias sobre a subnotificação de casos da doença, sobre a superlotação de hospitais e, no meio disso, sobre trocas de ministros, podem criar uma impressão de que nada mais, fora desse conjunto, está acontecendo no país.
Para não tirar do radar questões relevantes, Ecoa lista assuntos em curso que, embora sem relação aparente com a pandemia, têm impacto decisivo na vida dos brasileiros — especialmente questões de meio ambiente que afetam diretamente o clima, entre as quais, a persistência do desmatamento e a desmobilização de equipes de fiscalização do Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Medidas na área da educação que podem reduzir ou ampliar desigualdades, como o acesso ao Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) sem um calendário de preparação adequado também foram registradas, paralelamente ao intenso debate sobre as consequências presentes e futuras do coronavírus. Tudo isso apenas em abril.
Desmatamento persiste e MPF pede medidas
O sistema Deter de monitoramento por satélite, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), apontou que nem sob esse cenário de crise sanitária o desmatamento e a exploração de madeira foram contidos. No último dia 11, um relatório do Inpe informou que foram 1.204 km2 de áreas desmatadas no primeiro trimestre de 2020, uma queda de 5,4% nos alertas de desmatamento em relação ao mesmo período de 2019, que somava 1.273 km2. Por outro lado, o corte seletivo de espécies, que marca a exploração madeireira, foi responsável por 246,8 km2 do total do desmatamento observado na região nos três primeiros meses do ano — 133% maior que o mesmo período do ano passado.
O desmatamento no país, sobretudo na região amazônica, norteou pedido apresentado no último dia 23, à Justiça Federal do Amazonas, pela coordenadora da força-tarefa Amazônia do Ministério Público Federal, procuradora Ana Carolina Haliuc Bragança. Juntamente com outros 25 procuradores da República, a coordenadora apresentou uma ação com pedido de tutela de urgência para obrigar a União a adotar "medidas efetivas e urgentes" para conter a escalada do desmatamento na região. A meta era exigir de órgãos do governo ações imediatas de fiscalização e controle em dez pontos da região considerados os mais críticos, conhecidos como "hot spots" do desmatamento.
Funai autoriza ocupação e venda de terras indígenas
Em 22 de abril, o presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Marcelo Augusto Xavier Da Silva, publicou no Diário Oficial da União o texto da Instrução Normativa 09/2020, a qual mudou os procedimentos e critérios para a emissão do documento conhecido como "Declaração de Reconhecimento de Limites" em relação a imóveis privados. Na prática, a medida permite a invasão, a exploração e até a comercialização de terras indígenas ainda não homologadas pelo presidente da República. A Funai diz ter considerado "a necessidade de estabelecer regras sobre a manifestação da entidade quanto à incidência e confrontação de imóveis rurais em terras indígenas tradicionais homologadas, reservas indígenas e terras dominiais de comunidades indígenas".
Até então, o documento operava como certificação de que uma propriedade rural privada não invadia imóveis vizinhos ocupados por indígenas. No entanto, para entidades ambientais e parlamentares de oposição ao governo, a instrução normativa altera profundamente o regime de emissão do documento, uma vez que ele passará a ser também uma certidão de posse e poderá ser dado a imóveis privados que estiverem dentro de terras indígenas (TIs) não homologadas. Na última quarta (29), o MPF deu à Funai prazo de cinco dias para que a instrução seja revogada — caso contrário, será interposta ação na Justiça pela derrubada. O pedido de revogação consta de uma recomendação assinada por 48 procuradores de 23 estados.
Brecha para privatizar universidades públicas
No Rio, o agravamento da crise fiscal do estado por conta da pandemia de Covid-19 serviu de pretexto para o governador Wilson Witzel (PSC) enviar à Alerj (Assembleia Legislativa do Rio), no último dia 21, um projeto de lei que abre brecha para a extinção ou privatização de universidades públicas, fundações e estatais. A matéria, de apenas três artigos, foi enviada ao Legislativo em meio ao feriado prolongado de Tiradentes e deve tramitar em regime de urgência. O projeto revoga a proibição de que universidades públicas, empresas estatais e das principais fundações vinculadas ao governo do estado — instituída pela Alerj em 2018 — sejam extintas ou privatizadas. É preciso "tornar a máquina pública mais eficiente" por conta do coronavírus, justificou Witzel aos parlamentares.
Se for aprovada, a lei permitirá ao governo a possibilidade de extinguir as universidades públicas estaduais: a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), a Uenf (Universidade Estadual do Norte Fluminense) e a Uezo (Universidade Estadual da Zona Oeste). As principais fundações mantidas pelo estado, como a Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), que atua fomentando o desenvolvimento científico do Rio, também ficam na berlinda.
Chefes de fiscalização do Ibama exonerados
A área de meio ambiente se manteve na berlinda até o último dia de abril: como revelou o jornalista e colunista do UOL Rubens Valente, um decreto publicado no DOU, nessa quinta (30), exonerou os dois chefes do setor do Ibama responsável pelas grandes operações de repressão a crimes ambientais no país: Renê Luiz de Oliveira, coordenador-geral de fiscalização ambiental, e Hugo Ferreira Netto Loss, coordenador de operações de fiscalização, ambos, servidores concursados do órgão.
Os atos, assinados pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e pelo presidente do Ibama, Eduardo Bim, foram publicados durante a madrugada. A medida vem duas semanas após a operação que Oliveira e Loss haviam coordenado pelo fechamento de garimpos ilegais e para impedir a disseminação do novo coronavírus em terras indígenas no sul do Pará. Oficialmente, o Ibama alega que as substituições foram solicitadas pelo novo chefe da Dipro (Diretoria de Proteção Ambiental), o major da PM paulista Olímpio Magalhães. Empossado há apenas 15 dias, o militar assumiu no lugar do diretor da área, Olivaldi Azevedo, que já havia sido também exonerado por decisão de Salles.
Aulas afetadas, Enem mantido
Nas questões relacionadas à educação, a vigência da Covid-19 trouxe incertezas quanto à viabilidade do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), cujo calendário foi mantido após uma disputa judicial em diferentes instâncias do Judiciário. No último dia 17, a Justiça Federal em São Paulo atendeu a ação cível pública da DPU (Defensoria Pública da União) e determinou que o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) alterasse o cronograma do Enem 2020 em razão da pandemia.
Para a DPU, o calendário de prova deveria ser adequado à realidade do ano letivo, que está suspenso em muitos locais por conta de políticas de isolamento determinadas pelos estados ou mesmo pelo governo federal. No dia 29, porém, o cronograma original do exame, considerado a principal porta de entrada para o ensino superior no país, foi mantido em decisão do TRF3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), que suspendeu, a pedido da AGU (Advocacia Geral da União), os efeitos da liminar que permitia eventuais mudanças dada a pandemia. O exame digital estava marcado para os dias 11 e 18 de outubro, mas foi adiado, pelo governo, para 22 e 29 de novembro. Já a aplicação de provas físicas permanece para os dias 1º e 8 de novembro. Reportagem de UOL Educação mostrou como a Covid-19 tem afetado o preparo para o Enem de estudantes de favelas.
Ambientalistas temem por votação da 'MP da grilagem'
Já longe de obter um consenso entre parlamentares na audiência pública de março passado, no Senado, a MP (medida provisória) 910/2019, que estabelece novos critérios para a regularização fundiária de imóveis da União e do Incra, passou pelo mês de abril imersa em polêmicas. A maior rapidez no rito de tramitação das MPs no Congresso, instituída em função da pandemia, pode fazer com que a norma siga para o plenário da Câmara e seja votada a qualquer momento — mesmo sem acordo firmado, embora mediante pressão da bancada ruralista da Câmara sobre o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para que a coloque em votação.
Batizada pelos ruralistas de MP da Regularização Fundiária, e, pelos ambientalistas, de MP da Grilagem, a medida foi alvo de uma nota técnica publicada no último dia 9 pelo ISA (Instituto Socioambiental). No documento, a organização sem fins lucrativos alegou que a MP pretende abrir mais uma rodada de grilagem em massa de terras públicas no país. O receio das entidades que fazem parte de uma campanha contra a MP — entre as quais, além do ISA, o Greenpeace e a WWF — é que ela seja aprovada sem "uma robusta discussão e no meio da maior crise de saúde pública já enfrentada no país. Relevante e urgente agora é salvar vidas", diz a nota técnica da organização, que vê ainda risco de reconcentração de terra, desmatamento, conflitos fundiários e insegurança jurídica no processo. Especialistas têm alertado para o risco de disseminação da Covid-19 a partir de grileiros, garimpeiros e madeireiros.
A regularização de que trata o texto inclui assentamentos ocupados até maio de 2014, com área de até 15 módulos fiscais. O governo alega que, com a medida, beneficiará cerca de 300 mil famílias.
"Ideologia de gênero" é inconstitucional, diz STF
Combatidas pelo movimento denominado Escola Sem Partido, de 2015, e também por ações legislativas de grupos bolsonaristas, as abordagens de gênero nas escolas obtiveram a chancela do STF (Supremo Tribunal Federal) graças a uma decisão unânime da Corte no último dia 24. Na ocasião, dez ministros do Supremo acompanharam o relator, Alexandre de Moraes, e declararam inconstitucional uma lei de Novo Gama (GO), de 2015, que proibia o debate e presença de material didático sobre identidade de gênero em escolas da cidade.
A votação transcorreu em sessões virtuais iniciadas em 17 de abril. O Supremo analisou a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) proposta pela PGR (Procuradoria-Geral da República) contra a lei. No entendimento da PGR, lei do município goiano feria o direito à igualdade, a laicidade do Estado, a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional e o direito à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, entre outros. Especialistas em educação avaliam que a decisão do STF "cria uma jurisprudência qualificada e poderosa contra qualquer legislação que crie barreiras para o debate de gênero na educação", por exemplo.
Remoção de quilombolas do Maranhão
Depois de publicar em plena pandemia, no final de março, uma resolução de sete ministros anunciando a remoção e o reassentamento de famílias quilombolas no Maranhão, o governo federal se comprometeu com o MPF este mês a não tomar qualquer medida concreta para a remoção dessas comunidades na região — ao menos, enquanto perdurar a pandemia. Segundo o MPF (Ministério Público Federal), o compromisso foi firmado junto à instituição por representantes do Ministério da Defesa e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, em reunião virtual realizada no dia 2. A medida poderia impactar até 800 famílias de 30 comunidades de descendentes de escravizados que habitam a região desde o século 17.
Crescem relatos de violência doméstica
Em um cenário de pandemia galopante, desemprego e necessidade de isolamento social, países da América Latina passaram a registrar um pico de ligações para disques-denúncia com relatos de abusos domésticos. A constatação é de procuradores, equipes de apoio a vítimas, movimentos feministas e a ONU (Organização das Nações Unidas), segundo os quais em alguns países como México e Brasil tem havido um aumento nos relatos formais de abuso, enquanto em outros, como Chile e Bolívia, se vê uma queda nas queixas formais.
A América Latina tem pelo menos 20 milhões de mulheres e meninas vítimas de violência sexual e física a cada ano. No caso brasileiro, conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, só no estado de São Paulo — o mais atingido pela pandemia e com medidas de isolamento mais abrangentes —, houve um aumento de 45% nos casos de violência contra mulheres nos quais a polícia precisou ser acionada, em março passado, na comparação com o ano anterior. Já no México, revelaram dados oficiais, as queixas de violência doméstica à polícia aumentaram cerca de um quarto em março em relação ao ano anterior.
Vetada regulamentação da profissão de historiador
A regulamentação de categorias profissionais também foi afetada no mês de abril — mais precisamente, a profissão de historiador. No último dia 27, Bolsonaro vetou integralmente projeto de lei de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS) que regulamenta a profissão de historiador e estabelecia os requisitos para seu exercício. De acordo com o projeto, poderia exercer a atividade quem tivesse diploma de curso superior, mestrado ou doutorado em história, bem como diploma de mestrado ou doutorado obtido em programa de pós-graduação reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com linha de pesquisa dedicada à história. Profissionais diplomados em outras áreas que comprovassem ter exercido a profissão de historiador por mais de cinco anos também seriam regulamentados.
A rejeição da matéria foi embasada por manifestações do Ministério da Economia e da Advocacia-Geral da União (AGU). Para a Presidência, ao disciplinar a profissão de historiador com a imposição de requisitos e condicionantes, o projeto ofende o direito fundamental do livre exercício profissional, "a ponto de atingir seu núcleo essencial". Além disso, outra razão para o veto foi que as disposições do projeto iriam contra trecho do artigo 5º da Carta Constitucional que estabelece que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".
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