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De apoio a refugiados a ajuda com renda emergencial, cresce ação voluntária

A refugiada síria Muna Darweesh vem contando com ajuda de plataforma de voluntariado para divulgar o negócio de doces e salgados que tem ao lado do marido; o proprietário de casa em que vive não aceitou negociar aluguel -- "meus filhos precisam comer", diz ela - Arquivo Pessoal
A refugiada síria Muna Darweesh vem contando com ajuda de plataforma de voluntariado para divulgar o negócio de doces e salgados que tem ao lado do marido; o proprietário de casa em que vive não aceitou negociar aluguel -- "meus filhos precisam comer", diz ela Imagem: Arquivo Pessoal

Janaina Garcia

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

03/05/2020 04h00

As medidas de isolamento social defendidas pelas autoridades de saúde como combate ao coronavírus fizeram multiplicar, nas últimas semanas, ações de trabalho voluntário, de pessoas físicas e empresas, que impactaram em populações mais vulneráveis em diferentes cidades e regiões do Brasil.

Na expectativa de se ampliar o leque de ação desse tipo de trabalho, sem que isso viole as medidas de confinamento pela diminuição do contágio, uma iniciativa em São Paulo buscou conectar diferentes tipos de ação voluntária para atendimento remoto - ou seja, à distância.

De cartas endereçadas a idosos sob cuidados paliativos a orientações para que refugiados não quebrem economicamente em um contexto de pandemia, a ação, materializada na plataforma Atados, busca conectar pessoas e ONGs (organizações não-governamentais) interessadas em oferecer ajuda a quem precisa - independentemente da localização geográfica de ambas as partes dessa relação.

Pela plataforma, o voluntário pode agir como "embaixador", na ajuda à divulgação de campanhas, como auxiliar de tarefas diárias - em ações presenciais como ir ao mercado, à farmácia, passear com animais domésticos - ou simplesmente como um ponto de acolhida a quem se se sente solitário, durante o confinamento, ou em desespero frente a dificuldade em lidar com cenários econômicos imediatos e de um futuro próximo.

De acordo com o fundador do Atados, o administrador de empresas Daniel Morais, 30, a ideia é que a pessoa inicie esse movimento em seu próprio bairro e colabore com atitudes que, embora aparentemente pequenas, podem ser bastante simbólicas no contexto da pandemia. "Fazer parte desse tipo de corrente nos ajuda a ressignificar nossos relacionamentos sociais e a resgatar pequenos gestos e delicadezas do cotidiano que melhoram o dia da nossa comunidade", destacou.

Morais explica que o Atados já existia antes da pandemia, mas com cerca de 95% das ações voluntárias desempenhadas presencialmente. O financiamento vem de parcerias com empresas privadas — nas quais a plataforma atua para fomentar ações voluntárias entre os funcionários —, e o trabalho com ONGs é realizado sem custos.

Em meio à Covid-19, explica o fundador, as organizações tiveram de se adaptar para operarem em esquema sobretudo remoto, o que acabou atraindo mais interessados em colaborar a partir de seus próprios confinamentos. "Já conseguimos conectar mais de 130 mil voluntários, somando as 2.300 entidades que atuam dentro de alguma causa específica e usam a plataforma para oferecer o trabalho delas", detalha.

"Uma ação que tem dado muito certo é que conecta voluntários a escrever cartas a idosos com ONGs que conhecem os públicos e locais que são demanda. Outra ação que foi bem interessante é a de voluntários que buscam ajudar cidadãos que tinham dificuldades para acessar o recurso emergencial de R$ 600 liberado [em abril, via Caixa Econômica Federal] pelo governo: capacitamos grupos de advogados e de assistentes sociais para auxiliar com isso", explica.

Como cada ONG tem uma demanda diferente, e várias tiveram de mudar o foco em meio ao confinamento da pandemia, os voluntários que se cadastram na Atados acabam sendo 'cedidos' a elas.

"Solidariedade ficou mais latente" na pandemia

Se antes da crise sanitária o raio de ação da Atados estava concentrado em São Paulo e no Rio de Janeiro, nas últimas três semanas, a possibilidade de colaborar remotamente com quem precisa acabou estendendo as ações voluntárias para todas as regiões do país e até a países vizinhos, como Peru e Uruguai.

"O Brasil está sofrendo muito com essa pandemia, mas é um fato, também: a solidariedade ficou muito mais latente. Uma plataforma como a nossa se propõe a ser um caminho que ajude nesse processo", definiu.

Daniel Morais, fundador da plataforma Atados - Divulgação - Divulgação
Daniel Morais, fundador da plataforma Atados
Imagem: Divulgação
O trabalho remoto no cenário pandêmico também tem acendido o alerta sobre o excesso de funções - não só as de casa, sobretudo a quem tem filhos, mas também quanto ao excesso de horas para quem está desempenhando funções profissionais de casa, em esquema de home office. Diante disso, a reportagem quis saber: como há mais gente disposta a voluntariar mesmo com esses percalços?

"Como é à distância, você fica mais flexível em termos de horários e pode otimizar o seu tempo, mesmo com essas dificuldades. E o mais importante: acreditamos que o trabalho voluntário envolve uma troca, e, como tal, beneficia tanto quem recebe a ação, quanto quem a pratica. É um aprendizado mútuo, um crescimento mútuo - se cria uma visão sistêmica maior que permite até mesmo uma mudança de concepção crítica sobre a realidade, por que não?"

Morais fez administração de empresas na USP (Universidade de São Paulo) e trabalhou alguns anos no mercado financeiro, até que, com amigos, começou a focar em ações voluntárias desenvolvidas no ambiente empresarial. Ele ainda lida com isso, já que é a fonte primária de manutenção da Atados, mas constata: no Brasil, o investimento no setor ainda é feito mais por grandes companhias.

"Falta as empresas compreenderem que voluntariado não é doação, é uma troca, e quando o funcionário delas se envolve com isso, as valoriza ainda mais", diz.

Na plataforma, o interessado em doar a própria força de trabalho precisa filtrar as causas em que quer se envolver - de treinamento profissional a combate à pobreza, há também as relacionadas a consumo consciente, cultura e arte, direitos humanos, educação, proteção animal, saúde, refugiados, sustentabilidade e universo LGBTQI+, por exemplo. Há também as opções de filtro de acordo com as habilidades e a disponibilidade de tempo do voluntário.

Aula online de idioma gera renda para refugiados

Entre as ONGs que oferecem suas atividades na plataforma está a Abraço Cultural, que atua com a capacitação de refugiados para que, por meio da organização, trabalhem como professores de seus idiomas nativos e gerem renda. Antes da pandemia, segundo a diretora da organização, a advogada Mariângela Garbelini, 31, as atuações se davam em duas unidades na capital paulista e duas na fluminense. Agora, se espalham por todas as regiões brasileiras.

"Com o coronavírus, tivemos de nos adaptar porque vários de nossos alunos refugiados não tinham internet e computador em casa para a capacitação. Já estamos conseguindo fazer tanto a capacitação dos refugiados quanto a disponibilização das aulas deles remotamente — gerou mais trabalho e renda", conta.

Com a ajuda da Atados, ela explicou, a ONG tem conseguido também divulgar empreendedores refugiados, especialmente aqueles que não tinham vendas online no pré-pandemia. "Dá uma angústia ver tantos em vulnerabilidade, e, às vezes, uma ação simples que a gente pode fazer de longe, de casa, já ajuda tanto. Aí você entende o seu próprio privilégio", pondera.

"Meus filhos precisam comer", diz refugiada síria

A reportagem ouviu este relato de uma das refugiadas impactadas pelo trabalho da ONG, a cozinheira síria Muna Darweesh, 39, que veio para o Brasil em 2013 com a família - o marido e os quatro filhos — para sobreviver à guerra em seu país.

"Tenho quatro filhos: uma menina de 12 anos, dois gêmeos de 9 e um menino de 7. Um dos gêmeos é autista, o que não me permite trabalhar fora de casa neste momento. Como nem eu, professora de inglês no meu país, nem meu marido, engenheiro naval, conseguimos validar nosso diploma no Brasil, resolvemos trabalhar aqui, em nossa cozinha, com comida - doces e salgados árabes.

Antes da pandemia, fazíamos muita coisa para feiras e eventos. Até tínhamos um trabalho para ser feito em março na ONG Abraço Cultural, mas ele foi cancelado por conta da quarentena. O pessoal da organização nos pagou, mas muita gente que comprava ou compraria de nós parou.

Nessas últimas semanas, tem sido muito importante o trabalho da ONG em nos ajudar a divulgar nosso trabalho e nossos produtos pelas redes sociais. Isso possibilitou que outras pessoas se interessassem por eles. Acabamos conseguindo outros clientes por isso e também pela fanpage. O que produzimos é tudo para delivery.

Ainda temos muitas contas para pagar; meus filhos precisam comer e precisam ter as aulas online. Minha casa é alugada, mas o aluguel deste mês já não conseguimos pagar: o proprietário não aceitou nos conceder um desconto. Não é nada fácil ser refugiado em uma situação como essa, não; temos poucos contatos, nossas famílias não estão aqui para nos ajudar nesses tempos ruins.

Do fundo do coração, o que eu desejo é uma melhor vida para brasileiros, refugiados e imigrantes. Espero que tudo volte de novo, que tudo isso passe e que voltemos para nossa vida linda no Brasil."

Idosos em casas de repousos recebem cartas de rede de voluntariado - Divulgação - Divulgação
Carta enviada para idoso em isolamento
Imagem: Divulgação
Comunicação à moda antiga para idosos isolados

De Belo Horizonte, a ONG Associação Keralty, que também atuava mais local e regionalmente antes da crise da Covid-19, agora intermedeia com hospitais, asilos e outras casas de repouso a entrega de cartas manuscritas a idosos de todo o país.

A organização é relativamente jovem - começou em outubro do ano passado dentro de uma operadora de seguro de saúde da capital mineira. A ideia inicial era obter ajuda de voluntários que não só fizessem visitas presenciais e ajudassem com banho ou atividades musicais a idosos sob cuidados paliativos, internados em casa ou em hospitais, mas também escrevessem cartas a eles.

Com a pandemia, conta a coordenadora de projetos sociais e voluntariado da organização, a jornalista Erika Wendy Nunes, 36, foi preciso deixar as ações físicas de lado a fim de se evitar risco de contaminação. "Pensamos nessa comunicação à moda antiga, que é a carta, e pedimos a voluntários que as escrevessem e nos enviassem, digitalizadas, para que as mandássemos aos idosos. De 250 voluntários que tínhamos, antes da pandemia, somamos 787 apenas nas últimas três semanas - e dos estados de São Paulo, Rio, Distrito Federal, Ceará, Paraná, Bahia, Espirito Santo, Maranhão e Pernambuco, além de Uruguai e Peru."

"Depois da plataforma, o trabalho se expandiu razoavelmente, e fizemos parcerias com asilos e entidades filantrópicas para que elas também imprimissem essas cartinhas dos voluntários, repassadas por nós", detalha.

De acordo com ela, é pedido aos voluntários que escrevam cartas motivacionais - são passados a eles dados básicos dos idosos a quem serão endereçadas, como nome, idade e cidade em que vivem.

"É importante o voluntário mostrar que se importa com a pessoa para quem ele escreve, que ela não está sozinha, e também falar um pouco de si, para buscar estabelecer um vínculo. Estimulamos que esses idosos respondam as cartinhas que recebem da forma que der -alguns asilos e hospitais gravam vídeos ou fazem fotos, e mandamos isso aos voluntários. Em geral, quem manda e quem recebe essas cartinhas se emociona com o gesto, é muito bonito", conta.

"Faço parte da 'auditoria' dessas cartas - precisamos lê-las antes de enviá-las. Não é raro a gente ler esses textos com lágrimas nos olhos, porque nota que, quem escreveu, o fez com a alma."

"Se posso ajudar, por que não farei?", diz voluntária

Ecoa conversou com uma dessas voluntárias - a arquiteta aposentada Luzia Rachel dos Santos Braga, 62, mineira de São João Del Rey que, desde 1999, vive em Florianópolis. Há mais de um mês sem sair de casa, em respeito à quarentena, Luzia conta que escreveu duas cartas a idosas também confinadas, mas em situação de doença crônica, nos últimos dias. É como se experiência de alguns dias com a própria mãe, antes da chegada do vírus, a tivesse despertado para o quão solitários os mais velhos podem se sentir, independentemente de pandemia.

"Estou vivendo meu próprio confinamento. Reconheço que sou grupo de risco, com 62 anos, mas, graças a Deus, estou bem. Já desde que eu me aposentei, me envolvo com causas voluntárias -sinto que é uma forma de devolver para a sociedade ao menos um pouquinho do que eu já recebi.

Uma amiga me sugeriu essa plataforma do Atados, observando que seria legal eu integrar uma 'corrente do bem'. Identifiquei essa frente de escrita de cartas de próprio punho a idosos em situação de solidão. Aquilo me tocou: não só pelo propósito, mas pelo meio de se fazer isso - sempre mexi com computador, mas, de repente, é como se eu percebesse o quanto que uma carta não digitada, mas manuscrita, é tão menos impessoal.

As duas cartas que enviei foram a idosas de Belo Horizonte, doentes crônicas: dona Clélia, 89 anos, e dona Odete, de 70. Só tinha isso de informação sobre elas, mais a orientação da [Associação] Keralty para que eu me apresentasse, falasse um pouco de mim e escrevesse um texto que ajudasse a motivar essas pessoas.

A primeira carta foi um desafio, porque, afinal, eu não conhecia a interlocutora. Seria ela uma paciente em estado grave? Ou alguém com uma doença crônica?

Então, tive dois fatores que me motivaram muito nisso. Um foi a lembrança do período que passei com minha mãe, em Minas, em 2014, quando ela estava com 84 anos e eu já morava, havia alguns anos, em Santa Catarina. Vivi muito essa solidão do idoso, estando lá aqueles dias. E senti por ela. Minha mãe tinha cuidador de noite e de dia, os outros filhos [somos oito irmãos] sempre que podiam iam para lá, mas, mesmo assim, eu sentia aquela solidão [desejosa] de pessoas que fossem visitá-la. Quando alguém me fala que tenho que escrever a um idoso, agora, sempre me reporto a essas lembranças. Fica um pouco menos difícil escrever. Brota uma afeição pelo outro, sabe?

Luzia Rachel Braga se voluntariou para escrever cartas para idosos - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Luzia Braga: "Se posso, por que não ajudar?
Imagem: Arquivo Pessoal
O outro fator eu fui perceber na segunda cartinha, que foi recorrer a um sentimento de gratidão para escrever. Fluiu tanto que acabei enchendo quase três páginas. Ao fim, transcrevi uma crônica da Cecília Meireles, 'A arte de ser feliz', que me faz lembrar do pensamento do [líder da luta contra a segregação racial nos EUA] Martin Luther King [1929-1968] sobre vivermos, todos, presos em uma mesma teia: o que quer que afete um diretamente, afeta a todos indiretamente. Isso, para mim, faz muito sentido. Eu moro sozinha, sou solteira e sem filhos, mas nunca perdi contato com meus amigos, meus irmãos e meus sobrinhos.

Acredito que essa pandemia tem despertado mais na gente esse senso de comunidade. Se eu posso ajudar a levar um pouco de conforto a alguém que esteja precisando, por que não farei? Tentei escrever as cartinhas sem a esperança de uma resposta, ainda que eu quisesse estabelecer um vínculo, mas entendo que muitos desses idosos estão em situação de depressão. O que vale, acredito, são essas demonstrações de compaixão e fraternidade que precisam e podem ser multiplicadas mesmo em gestos como esses. Acho que isso explica muito a tal arte de ser feliz."