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Anvisa dá 1º passo para desmistificar uso da Cannabis, dizem especialistas

Órgão dá liberação para venda do primeiro produto a base de Cannabis em farmácias do Brasil - sand86/iStock
Órgão dá liberação para venda do primeiro produto a base de Cannabis em farmácias do Brasil Imagem: sand86/iStock

Paula Rodrigues

De Ecoa, em São Paulo

06/05/2020 04h00

Março de 2020 foi um mês relativamente atípico para quem há anos trava uma luta pela liberação da Cannabis para fins medicinais no Brasil. Isso porque no dia 10 entrou em vigor a resolução RDC 327/2019 da Anvisa que libera a comercialização de produtos à base de Cannabis em farmácias de todo país. Já em 22 de abril a primeira empresa conseguiu autorização para produzir e distribuir o óleo, que só será vendido para pessoas com receita médica.

Na prática, o que a farmacêutica Prati-Donaduzzi conseguiu foi uma autorização sanitária para comercializar o seu Canabidiol com cinco anos de validade, e sem possibilidade de ampliação deste prazo. A Anvisa ressalta que não se pode considerar o produto como um medicamento.

De acordo com o órgão, a autorização sanitária para produtos à base de Cannabis foi "criada de modo a disponibilizar, de forma mais rápida à população brasileira, produtos seguros e de qualidade contendo derivados de Cannabis, mas que não concluíram os estudos necessários para o registro como medicamento." A Anvisa também relembra que, em 2017, já havia registrado o primeiro — e até então único — medicamento contendo derivados de Cannabis.

A atual medida, porém, não se estende para a produção e comercialização por pessoas físicas. E também não contempla o plantio da Cannabis para uso medicinal no país, sendo assim, para produzir a fórmula é necessário contar com a importação da planta.

A médica Paula Dall'Stella é pioneira na prescrição de Cannabis medicinal no Brasil e vê a liberação como uma vitória.

Na prática, isso muda a forma como a gente entende a Cannabis hoje em dia, ou seja, como de fato um medicamento. É a primeira vez que temos uma regulamentação da Cannabis medicinal. E é a primeira vez que um produto é aprovado no país.

Paula Dall'Stella, médica

Para comentar o assunto e explicar qual é o real cenário atual do uso medicinal da Cannabis no Brasil e as perspectivas para o futuro, Ecoa conversou com três especialistas. A Dra Paula Dall'Stella, especialista em Radiologia e Diagnóstico por imagem que há anos trabalha com medicina funcional. O historiador Henrique Carneiro, que também é autor do livro "Drogas: A história do proibicionismo". E Cassiano Teixeira, diretor da Abrace Esperança, única associação autorizada a plantar maconha e produzir remédio à base da planta para pais e mães de crianças com diversas doenças.

Abrace - Ítalo Rômany/Eder Content - Ítalo Rômany/Eder Content
Cultivo da Cannabis ainda é proibido no país, Abrace é a única associação que pode plantar e comercializar produtos a base de maconha
Imagem: Ítalo Rômany/Eder Content


Qual é a relação histórica do Brasil com a Cannabis?

Henrique Cordeiro: Essa planta veio de fora, não é nativa do Brasil. Há muitas controvérsias sobre como ela chegou aqui. A hipótese mais provável é que ela passa a ser mais popular com o uso comercial e industrial da produção de insumo naval pelos portugueses, como a produção de velas e cordas para navegação. Isso resulta em várias medidas da coroa portuguesa para o plantio da maconha no Brasil, que não era chamada de maconha, mas sim de linho cânhamo.

Umas das primeiras iniciativas aconteceu em 1780: a instalação de uma plantação no Rio Grande do Sul. Cerca de 500 negros escravizados foram mandados para lá para trabalhar no cultivo e processamento da maconha para a produção de tecido, por exemplo. Foi assim que surgiu a cidade que conhecemos hoje como São Leopoldo, anteriormente Feitoria do Linho Cânhamo. Também existia o consumo medicinal que estava consagrado na farmacopeia do mundo inteiro, sobretudo na ocidental, em países como Estados Unidos e Alemanha. O Brasil também.

Aqui nós tínhamos um livro muito famoso à época escrito pelo Dr. Chernoviz ["Formulário ou Guia Médico e Dicionário de Medicina Popular"]. A relação era dada nesses três campos: o industrial, a de uso na farmacopeia e de uso transgressivo pelas comunidades negras, que vão ser objeto da primeira lei que visa repelir o uso, em 1830, no Rio de Janeiro.

Quando você diz "uso transgressivo" está falando do uso recreativo?

Henrique Carneiro: Não. Eu não gosto da palavra "recreativo", porque, para esse período, o uso tinha uma dimensão religiosa. Os negros escravizados usavam a planta em festas religiosas, nos batuques... Em momentos que não se pode reduzir a puro lazer, a diversão. Fazia parte de uma cultura tradicional afrobrasileira que incorporava várias práticas transgressivas ligada ao domínio do corpo e da mente.

Dentro da farmacopeia quais eram os usos?

Henrique Cordeiro: No passado tinha uma diversidade de indicações. Algumas presentes até hoje. Anticonvulsivos, por exemplo. Era bom para problemas gastrointestinais também. Para dores menstruais. E tinham os usos tópicos, quando se usava para tratar feridas. A Cannabis também era receitada para problemas respiratórios: se fumava maconha contra asma e bronquite. Tinha inclusive um famoso cigarro importado da França, chamado Grimault. Existia muita propaganda dele na imprensa brasileira.

Cannabis - Ítalo Rômany/Eder Content - Ítalo Rômany/Eder Content
Estufa localizada na Abrace, em João Pessoa (PB), para manter a temperatura ambiente do cultivo da Cannabis
Imagem: Ítalo Rômany/Eder Content

Como podemos definir a questão da Cannabis hoje?

Dra. Paula Dall'Stella: No cenário atual, a gente vê uma grande quantidade de pacientes orientados já vindo com bastante informação sobre. As pessoas estão cada vez com mais amplitude de conhecimento. Mas claro que ainda existe preconceito por falta de informação sobre tema. Por isso muitas pessoas ainda acreditam que a Cannabis pode ser considerada uma droga perigosa. Mas ao contrário do que muitas drogas que se usa com frequência na prática clínica, a Cannabis passa a ser uma droga bastante segura em relação aos efeitos colaterais e a relação com o organismo. O cenário atual no Brasil é pequeno se comparado a outros países. Mas a tendência é de crescimento.

Hoje, o óleo à base de Cannabis é usado para tratar quais problemas de saúde?

Dra. Paula Dall'Stella: A Cannabis tem um leque terapêutico muito denso e favorável no uso de doenças com condições inflamatórias concomitantes. Doenças crônicas, dor crônica... Nos casos de doenças neurodegenerativas, autoimunes, nas condições oncológicas, na epilepsia, no autismo... O medicamento pode ser usado em condições dermatológicas também. A Cannabis possui uma gama de utilidade bastante grande. Dependendo da doença, ela tem uma atuação diferente. Cada paciente, inclusive, tem uma resposta diferente porque nós possuímos um chamado endocanabinoide, que é diferente de pessoa para pessoa. O que esse sistema faz com muita maestria é devolver homeostase [equilíbrio interno] ao nosso corpo, já que muitas doenças se relacionam ao seu desequilíbrio.

Qual é o grande impacto que esse produto à base de Cannabis tem na vida das pessoas?

Dra. Paula Dall'Stella: Os pacientes que buscam a melhora dos sintomas clínicos com medicamentos à base de Cannabis são pessoas com restrições funcionais devidos às doenças que cada um tem. E a Cannabis tem essa qualidade, dependendo da condição a ser tratada, de devolver a autonomia a esses pacientes com Parkinson, com esclerose múltipla, por exemplo, que são doenças em que existe um comprometimento do sistema muscular, que apresentam rigidez, tremores...

Ela pode ajudar significativamente em situações como essa, devolvendo autonomia e melhorando as condições de vida, dando qualidade de vida para pacientes e familiares ao redor. A gente vê isso claramente nas crianças com síndromes relacionadas à epilepsia refratária, onde nenhum medicamento disponível na farmácia pode ajudá-las. E a Cannabis passa a ser a única opção terapêutica viável.

Cassiano Teixeira: A maioria dessas pessoas tem um excesso de medicamentos, que é a lógica do mercado: quanto mais melhor. Então, elas já vêm intoxicando. O óleo tem sido um substituto. Só na questão desse "desmame" a gente já percebe um benefício. As pessoas apresentam menos internações, por exemplo, ele dá uma melhorada na questão motora, na inflamação, no apetite, no sono... O paciente volta à vida, volta a perceber os sentidos.

O fato é que a Cannabis é um alimento que estava faltando na vida dessas pessoas. Ela fazia parte da nossa cadeia alimentar até 1930. Historicamente, plantava-se maconha no Brasil do Oiapoque ao Chuí. Isso mudou com a proibição.

E aí eu faço uma analogia: se a gente tivesse proibido a laranja, por exemplo, e todas as frutas ricas em vitamina C, a gente ia ter uma epidemia de gente com deficiência de vitamina C.

Por que a mentalidade brasileira mudou em relação à Cannabis? Como fomos de algo comum para a proibição?

Henrique Carneiro: As coisas começam a mudar a partir da década de 1920, quando começa a se institucionalizar o acordo internacional que proibia certas drogas, como o ópio, assinado em Haia, na Holanda. E depois com as conferências de Genebra. E o Brasil se incorpora nesses tratados. Mas não só isso. O país passa a ser um defensor de que a maconha fosse incorporada também. A Cannabis chegou a ser apresentada pelo Brasil como o "ópio africano trazido para o país." E tem várias interpretações sobre como chegamos a isso. Uma delas é que a institucionalização da medicina no Brasil vai ser marcada por uma enorme influência do positivismo e do eugenismo, ou seja, de uma ideia de que era preciso melhorar a raça brasileira. E isso significava o embranquecimento. Então, tinha uma grande campanha anti-africana.

Havia uma ideia de que o componente africano, tanto no sentido demográfico quanto cultural, era um atraso para o Brasil. E aí essa planta vai ser cada vez mais edificada como uma espécie de ópio africano trazida, sobretudo, para o norte e nordeste do país. Como não havia o uso pela classe média, ela era estigmatizada como uma coisa de pobre, de afrobrasileiro, de nordestino. E a medicina passa a ter o papel de principal agente de uma campanha para proibir a planta.

Abrace - Ítalo Rômany/Eder Content - Ítalo Rômany/Eder Content
Óleos artesanais produzidos pela Abrace para o combate de doenças como a epilepsia
Imagem: Ítalo Rômany/Eder Content


Recentemente, a Anvisa liberou a comercialização em farmácias e drogarias do primeiro produto à base de Cannabis. Como você viu essa liberação?

Dra. Paula Dall'Stella: Eu vejo essa liberação como uma vitória. O primeiro passo é entender que ela não é uma droga de abuso, ela é um medicamento. Então, esse primeiro passo foi dado. Estará disponível nas farmácias para venda. Agora, é claro, vamos começar a ver muitas outras formulações entrando na farmácia com diferente composições, o que é muito favorável para o paciente, porque a gente sabe que ter um tipo só não atende todas as demandas.

Henrique Carneiro: Agora, a indústria farmacêutica global incorporou a maconha como produto de primeira linha. Um dos mais emergentes. É um "boom" comercial na área farmacêutica, que substitui inúmeros medicamentos que causam prejuízos, como os opioides e os benzeoadeinicos, o que também gera uma economia enorme. No Canadá e nos Estados Unidos, onde esses produtos já são legalizados, existem empresas de bilhões de dólares. No âmbito mundial, o mercado mundial já incorporou, enquanto o Brasil fica nesse nicho de atraso que não permite o cultivo, por exemplo.

O que as pessoas entendem de errado a respeito do uso medicinal da Cannabis?

Dra. Paula Dall'Stella: Um dos principais erros é entender que na Cannabis alguns compostos são bons e outros são ruins. Onde o canabidiol é a substância terapêutica e o THC é parte ruim da planta pelo fato dela causar alteração na percepção da realidade. Isso é errado. Vários estudos já comprovaram que existe um efeito sinérgico de resposta terapêutica quando todos os componentes da Cannabis são utilizados juntos. E a resistência se relaciona muito ao preconceito e a atividade histórica que a Cannabis apresenta. Ela foi utilizada como medicamento até um momento da história da sociedade, depois ela passa a ser associada a minorias sociais, ao desemprego, a crimes. Erroneamente relacionada. Mas ela não é uma "droga violenta", ela não incita a criminalidade. Ao contrário, ela é uma substância relacionada ao relaxamento, à calma, ao controle do estresse e à introspecção.

Por que existe tanta resistência em aceitar a planta para fins medicinais?

Cassiano Teixeira: Essa questão da gente ter pedido essa parte histórica. Não saber que essa planta era muito usada na nossa sociedade. Era o óleo que se dava para quem estava doente. Isso que foi perdido. A Cannabis não está aqui para entorpecer, ela está aqui para alimentar. O remédio só remedia os sintomas, e o alimento que vai fazer seu corpo se regenerar. E tem a questão dela servir para salvar vidas. As pessoas falam que é droga, que mata. Mas e as drogas que estão na farmácia? Não chamamos de drogaria aqueles lugares? Aí vem o discurso de: "ah, mas deixa a pessoa doida". Gente, não! O que deixa a pessoa doida é a dose. Uma dose alta de sal, açúcar, café faz a pessoa passar mal.

A diferença entre o veneno e a cura é a dose. Existe um trabalho grande de desconstrução que toma muito tempo.

Henrique Carneiro: O maior preconceito dessa planta está na associação que ela tem com a cultura negra marginalizada, que vem do período imperial e que se acentua na época da República com o positivismo médico. Era toda uma ideia de que a cultura negra tinha uma tendência maior ao crime, porque os negros não eram capazes de ter autocontrole devido à falta de um juízo moral causada por elementos culturais e religiosos que envolviam a Cannabis. Então, a planta era vista não só como algo comercializado pelos negros como também algo que os tornava criminosos, marginais... Aí surge a ideia de que fumar te faz perder o juízo, que te leva ao debilitamento da racionalidade.