Prefeituras alugam hotéis para cuidar de desabrigados na pandemia
Nos últimos três anos, o desempregado Marcio Rodrigues dos Santos passou suas noites dormindo no banco de trás de um Monza, numa praça ao relento, em albergues para sem-teto ou em hotéis baratos quando conseguia arranjar um bico de segurança ou cozinheiro.
Desde o final de abril, com a intensificação da pandemia de coronavírus, ele se instalou num quarto do Hotel Ibis para uma temporada de dois meses, com direito a pensão completa. O upgrade só foi possível graças à parceria do hotel com a prefeitura de Osasco (SP), uma iniciativa que começa a engatinhar nas cidades brasileiras, apesar de já existir em outros países.
Na Califórnia (EUA), por exemplo, o governo reservou mais de 11 mil quartos para a população em situação de rua acima dos 65 anos ou com problemas de saúde, aproveitando o esvaziamento da rede hoteleira. O objetivo é dar uma chance de isolamento físico para quem mais precisa e evitar esgotamento dos hospitais.
"Tem muita gente na rua desacreditada, achando que não vai pegar", disse Santos, 53 anos, que se recupera de uma cirurgia no tornozelo após sofrer um acidente de moto. Ele está hospedado com outro homem de 48 anos que espera para fazer uma cirurgia na bacia. "Estamos os dois de bengala. Só saio para ir ao banco para ver se caiu dinheiro e ao hospital para pegar meus remédios. É difícil ficar nessa situação, depender dos outros."
Além de Osasco, que assegurou 15 quartos no Ibis, a prefeitura de Cuiabá (MT) alugou um hotel inteiro com 120 vagas por três meses, assim como Macapá (AP), que levou 70 desabrigados para um hotel por 30 dias e estendeu a hospedagem por mais um mês.
Em Jacareí (SP), a prefeitura dá um incentivo de até R$ 200 por mês para os sem-teto que toparem ficar em isolamento num dos 18 quartos do Hotel OYO, enquanto Florianópolis (SC) usa um hotel para isolar desabrigados sintomáticos que esperam resultado do teste de Covid-19. Todos os espaços têm auxílio de assistência social
"Não faz sentido uma estrutura desse tamanho ficar parada", disse Luis Paulo Severo, sócio fundador do 2S Hotel, no centro de Florianópolis. O executivo reservou até junho 21 quartos à prefeitura por preço de custo (R$ 90), incluindo todas as refeições. "A gente precisa muito devolver à sociedade o resultado dos nossos negócios."
Já a cidade de São Paulo, que acumula mais de 2 mil mortes por Covid-19, está à procura de 100 quartos. A prefeitura publicou um edital na semana passada convocando hotéis para prestar serviços a idosos sem-teto que estão em Centros de Acolhidas, onde não existe a possibilidade de isolamento físico, a melhor forma de evitar a contaminação pelo vírus. Nenhum hotel havia se credenciado até sexta-feira (8). A cidade quer subsidiar diária até R$ 80 por pessoa.
A capital paulista tem a maior população em situação de rua do país, com 24 mil pessoas, sem contar os 2 milhões que moram em ocupações. No dia 1º de maio, a prefeitura entregou o oitavo Centro de Acolhida Emergencial, adaptando um Centro Educacional Unificado (CEU) na zona leste. No total, foram criadas 680 vagas emergenciais devido à pandemia, abertas 24 horas por dia.
"É muito mais barato fazer uma política de usar hotéis, que são estruturas prontas, do que criar um abrigo do zero. Mas hotéis também têm um custo e é preciso assegurar serviços de assistência. Não basta apenas transferir pessoas", disse Bianca Tavolari, professora do Insper e pesquisadora do Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
"Tentativa desesperada"
Em Brasília, a questão preocupa até mesmo deputados de bancadas rivais. Alexandre Frota (PSDB-SP) criou um projeto de lei que determina que hotéis e pousadas destinem 30% de suas vagas a pessoas em situação de rua ou em moradias coletivas. O PSOL tem outro PL mais abrangente, que assegura espaços como centros educacionais e esportivos, imóveis públicos ou privados ociosos, além de pousadas e hotéis para a mesma população.
Tavolari lembra que já existe na constituição uma previsão com a qual autoridades podem, em caso de calamidade, requisitar propriedades privadas, como hotéis, e indenizar após o uso.
"Não é o melhor caminho", acredita. "Mas, como já estamos vendo pessoas morrendo em suas casas nas favelas, talvez a gente já tenha atingido um extremo para que alguma prefeitura faça algo do tipo."
A pesquisadora faz parte de um grupo de coletivos por trás da campanha "Quartos da Quarentena", que pressiona prefeituras por meio da coleta de assinaturas (até o momento cinco cidades participam). A ideia é pedir a liberação de quartos de hotel para o isolamento de famílias que vivem em situações precárias, profissionais de saúde e sem-teto.
"É uma tentativa desesperada. No início, achávamos que era uma medida protetiva. Agora, é uma medida de urgência, de reparação", disse Tavolari.
Conheça as iniciativas em Osasco, Florianópolis e Cuiabá:
Osasco: Hotel Quase Normal
Em Osasco, que tem uma população de rua estimada em 400 pessoas, a prefeitura administra três albergues com 130 vagas. Estão todos quase lotados. No Ibis, a cidade reservou 15 quartos duplos a R$ 120 por pessoa, incluindo pensão completa. No momento, há 16 hospedados vindos dos albergues, como Márcio Rodrigues dos Santos e seu colega de quarto.
O secretário de Assistência Social Cláudio Piteri acredita que em uma semana ou dez dias todas as vagas serão preenchidas. Uma equipe acompanha o grupo no hotel, formada por quatro educadores sociais, três assistentes sociais e um psicólogo. "Se surgir demanda maior, vamos tentar ampliar", disse Piteri.
"A maioria resiste em usar nossos serviços por uma série de razões", continuou o secretário, citando problemas com dependência química, desconfiança com o poder público e receio em abandonar patrimônio, como animais de estimação.
O Ibis segue funcionando quase normalmente. A prefeitura usa apenas um andar do hotel, enquanto o restante fica disponível para outras reservas comuns. O restaurante está fechado, e as refeições são entregues no quarto, todos com wi-fi, ar condicionado e TV a cabo.
O gerente do hotel, Bruno Latini, explica que deu férias aos funcionários que podiam tirar e reduziu em 25% a jornada de quem continua trabalhando. A ocupação está bastante abaixo do normal, mas acima da média entre os concorrentes no momento.
"A maioria dos hotéis da região fechou", disse Latini. "Continuamos abertos para ser um ponto de apoio para quem precisa. Não pensamos em publicidade e, sim, em fazer a diferença."
Cuiabá: Controlando a sobriedade
Uma das primeiras a chegar ao Hotel Albergue de Cuiabá foi Franciele Jessica Carvalho, de 28 anos. Ela contou que tem problemas com álcool, mas que está sóbria desde que ganhou um quarto provisório, no final de abril. "No começo eu até tremia, mas estou conseguindo me controlar. Aqui tem ajuda", disse.
A prefeitura da capital do Mato Grosso fez uma parceria com um hotel para abrigar 120 pessoas em situação de rua por três meses, pagando diária de R$ 80 com todas as refeições. Cuiabá tem três albergues com 150 vagas, além da Pastoral dos Imigrantes, que oferece 100 vagas e recebe boa parte de venezuelanos. A cidade estima que existem ainda 212 pessoas desabrigadas.
Carvalho não lembra há quanto tempo mora nas ruas, dormindo na praça. "Faz anos", disse. "Tive um desentendimento com meu marido e resolvi ir embora." Chegou a trabalhar numa pizzaria, mas está desempregada.
Chegar ao hotel e dormir numa cama de verdade foi um "mar de rosas". "Minha coluna já tinha acabado", disse. "Estou vendo muito desenho e Telecine. Só tem filmão." Sua esperança é que a temporada no Hotel Albergue ajude a estabilizar a vida para conseguir um emprego.
Muita gente não quis ir para o hotel, e 18 que foram já desistiram. "Vazaram. Bateu a abstinência, alguns não conseguem segurar a onda", disse. "Para mim está bom. Aqui não é bagunçado."
A secretaria de Assistência Social, Direitos Humanos e da Pessoa com Deficiência informa que o Hotel Albergue abriga atualmente 88 pessoas, sendo apenas oito mulheres. Vinte pessoas trabalham para manter o espaço e os serviços prestados.
"Não sou assistente social, fiquei bastante surpresa com o que vi. Achava que a maioria estava na rua por conta de drogas, mas não é verdade", disse a primeira-dama de Cuiabá e idealizadora do Hotel Albergue, Márcia Pinheiro. "A maioria tem família. Vi um advogado com mestrado e uma ex-vereadora com dois filhos formados. Estou começando a entender essa realidade."
Florianópolis: Sem lucro, nem prejuízo
A capital catarinense estima sua população de rua em 460 pessoas. Com o agravamento da pandemia, a Passarela da Cidadania, no sambódromo Nego Quirido, virou um abrigo provisório expandido para cerca de 300 sem-teto que recebem refeições, kits de higiene e outros serviços. Cerca de 200 dormem em colchões no local.
O 2S Hotel fica na mesma região central da passarela e, desde o final de março, já recebeu 29 desabrigados que apresentavam sintomas do novo coronavírus e aguardavam resultado do teste. Até sexta-feira, apenas dois seguiam hospedados. São 21 vagas totais, a R$ 90 por pessoa.
Para justificar a contratação, a secretaria de Assistência Social cita um decreto municipal de 18 de março que determina isolamento por 14 dias de todas as pessoas com suspeitas ou confirmação de Covid-19. "Não dá para ter quartos individualizados nos abrigos públicos", disse Maria Cláudia Goulart da Silva, secretária da pasta.
Foram os donos do hotel que procuraram a prefeitura em busca da parceria. Luis Paulo Severo, um dos proprietários, explica que não está tendo lucro com a iniciativa, mas evita o prejuízo. "É uma forma de manter os contratos do time que está trabalhando", afirmou.
"As pessoas vêm me perguntar como funciona. Acham que simplesmente jogam os pacientes no hotel e a gente se vira", disse Severo. "Não é assim, temos um suporte gigantesco da prefeitura."
O hotel ficará à disposição da cidade até junho, com possibilidade de extensão. "Alguns donos de hotéis da cidade querem reabrir logo. Mas a gente sabe que os turistas não vão voltar da noite para o dia. O prejuízo vai se dar nos próximos meses."
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