Jardineiro vira presidente em Paraisópolis (SP) para ajudar contra Covid-19
Evandro Iram, 31, acorda às 7h, toma seu café e vai trabalhar cortando grama em várias regiões de São Paulo. O jardineiro volta às 18h para Paraisópolis e se transforma: assume uma presidência. Ele começa sua função de presidente de rua, cuidando dos vizinhos desassistidos durante a pandemia e a quarentena.
"Umas crianças aqui da viela vieram me perguntar onde tinha distribuição de ovos de Páscoa, e isso mexeu muito comigo. Corri atrás. Além do chocolate que as crianças queriam, tinha pessoas precisando de fralda, cesta básica, produtos de higiene. Quando eu vi que não era só eu que estava precisando, me cadastrei a presidente", conta Iram.
A criação dos presidentes de rua é uma das ações promovidas pela Associação de Moradores e Comércio de Paraisópolis para controlar o impacto do novo coronavírus dentro da segunda maior favela de São Paulo. Cada presidente tem a missão de cuidar de 50 famílias.
A rotina de Iram no bairro inclui visita a todas as casas para atualizar cadastros e distribuir as cestas. Ele conta que fez um grupo no WhatsApp para conseguir se comunicar melhor com as famílias. "Já teve caso de urgência que tive que atender do meu trabalho. Uma vizinha estava passando mal, com falta de ar, febre, e tive de fazer o corre de chamar a ambulância. Nós, presidentes, temos uma grande responsabilidade sobre essas vidas", diz.
A relação dele com as famílias já tem um longo laço. A maioria ele conhece há mais de 10 anos. As casas que ajuda geralmente são de mães solos, idosos, empregadas domésticas que perderam suas diárias, famílias em que só uma pessoa estava trabalhando vendendo bala e teve de parar, e pessoas dispensadas pelos patrões sem assistência alguma.
São muitas histórias e dificuldades que Iram tem encontrado. Ele conta que sua criação o ajudou bastante a ter força de fazer pelo próximo, "Minha mãe é da igreja, e ela sempre ajudou muitas pessoas. Isso foi um espelho pra mim. Já que eu não podia tirar da minha casa, corri atrás de doações para todos nós que precisamos. Acredito que vamos aprender muito sobre solidariedade nesta pandemia."
Fome é também 'de quem as ouça'
Na rua Wilson, há outro presidente. O nome dele é Felipe Cardoso, 27, microempreendedor e um dos membros do projeto "Faça uma criança sorrir", que aos fins de semana fechava uma rua para o lazer de crianças e adolescentes.
Com a epidemia, Felipe e seus companheiros do projeto se cadastraram como presidentes e correram atrás de doações. Conseguiram alimentos e seis pessoas voluntárias para fazer as marmitas, que entregam no almoço e jantar, de segunda a sábado.
"Para além das cestas da associação de moradores, nós fomos no boca a boca atrás de doação. Conseguimos uns alimentos lá na zona leste. Atravessamos a cidade para pegar e poder cozinhar as marmitas para muitos que passam pela fome não só no período da epidemia, mas em todo o ano", afirma.
Diariamente, esses voluntários estão em pé às 6h para se organizar, fazer a comida e suprir a grande demanda. São entregues cerca de 200 marmitas por dia no bairro. Nessas entregas, muitas amizades são criadas, e muitas realidades ficam expostas.
Felipe afirma que falta o básico para a sobrevivência em muitas casas. Ele diz que, olhando de fora, não daria para saber que essas famílias estariam em situações tão graves. "Tem família comendo cuscuz cru para matar a fome das crianças porque não tem condição de comprar o gás. São situações que me movem a fazer mais pelos meus."
Ao fim, a relação com os vizinhos não é apenas de auxílio com as necessidades práticas. Felipe diz que, às vezes, falta também uma palavra amiga. "Sabe, as pessoas sentem fome de uma pessoa que possa ouvi-las. E é isso que eu também tenho feito nessa época de isolamento."
Ele compartilha que a epidemia o está ajudando a sentir o que as pessoas passam. "Dizem que é uma gripezinha, mas falam isso porque não está [afetando] do seu lado. Porque, se tem alguém que está passando por isso [por perto], aí você vai ver o sofrimento. A partir da dor, aprendemos que precisamos uns dos outros". Como membro do projeto, ele afirma que, mesmo após a pandemia, a distribuição das marmitas vai continuar pelo menos duas vezes na semana.
Cuidadora de criança e da vizinhança
A solidariedade tem sido uma escola na vida de Bruna Neves, 23, moradora de Paraisópolis e uma das presidentes da viela Canita, mãe de três crianças e cuidadora voluntária de mais três. Bruna tem a rotina agitada, mas se voluntariou para a função por ver os problemas em sua viela: desempregados, pessoas passando fome.
Ela e outra presidente cuidam de 60 famílias. Uma delas é formada pelo pai e as crianças que ela ajuda a cuidar que, antes, chegavam a ficar sem o café da manhã — do salário do pai, resta pouco após pagar o aluguel. De segunda a sábado, Bruna levanta às 6h para recebê-las, às 8h arruma a casa. Depois, faz o almoço e se arruma esperando a mensagem sobre as entrega das 60 marmitas que distribui.
Quando precisa sair, paga R$ 50 para uma moça ficar com as crianças. "É uma rotina muito puxada, mas eu faço porque me alegro em ajudar essas famílias", conta ela que, com a companheira de rua, já tirou até dinheiro do bolso para montar cestas e dar a famílias de outras partes do bairro. "Aqui nós fazemos o máximo, procuramos ajudar pessoas que vêm atrás de nós. É só conseguir algum alimento que eu levo para doação."
A amizade entre os vizinhos se deu desde que Bruna criança, por ela ter nascido e crescido ali. Com o contato estreito com as famílias, hoje ela considera a vizinhança parte de sua família — e diz está crescendo muito com todas as dificuldades. "Antes da epidemia, você não via as pessoas se mobilizando tanto para ajudar umas às outras. Agora isso se tornou rotina, parte do nosso dia", finaliza.
Lições em casa e na rua
De tardezinha, os pedreiros finalizam seus trabalhos em frente à casa de Edenilde Silva, 37, quando ela recebe o pedido de um copo d'água de um dos pedreiros. Foi ganhando confiança na vizinhança que Edenilde se tornou presidente da rua. Dona de casa e confeiteira nas horas vagas, mãe de duas crianças e dois adolescentes, ela se voluntariou por ter muitos idosos e doentes crônicos em sua rua.
Após arrumar a casa e acompanhar as lições das crianças, ela aguarda a mensagem das marmitas, vai retirar e avisa todos os membros da rua, para que cada um busque a doação por vez. Também realiza visitas para saber as condições das famílias e as urgências.
Edenilde fala das dificuldade que tem na sua viela, principalmente por acessibilidade. "Eu tenho criado vínculos muito especiais. Tem uma mulher que tem dois filhos e o marido que está desempregado. Mesmo assim, ela compartilha com outras pessoas que estão em situação pior sua cesta básica. Vejo que pessoas que têm pouco costumam ser mais solidárias".
Nascida em Sergipe e moradora na favela desde 2016, Edenilde conta que Paraisópolis é como se fosse sua escola — onde aprendeu a crescer, ter garra e se tornar uma mulher persistente. O trabalho como presidente fez com que ela olhasse a população de sua comunidade com outros olhos, com mais cuidado, sensibilidade e apoio coletivo.
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