Legado da MP 910: Qual é o impacto socioambiental de mudar lei fundiária
Enquanto o Brasil escala para terceiro lugar no mundo em número de mortos e contaminados pelo novo coronavírus, a base de apoio no Congresso deve aprovar uma lei que, segundo ambientalistas, pode aumentar ainda mais o desmatamento na Amazônia, acelerando a próxima crise: o aquecimento global.
As motosserras não pararam na quarentena. Foi registrado um crescimento de 171% na retirada de floresta em relação a abril de 2019. O total de supressão vegetal, 529 km2, é o recorde dos últimos dez anos. Os dados são do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Imazon, divulgados em 18 de maio.
Uma campanha pelas redes sociais que vem incluindo de ativistas e pesquisadores a empresas e artistas como Caetano Veloso e Anitta, pede que o Congresso não vote uma nova legislação de terras. Além da oposição a mudanças previstas do projeto, o argumento é de que se trata de ação importante para ser decidida em meio a uma pandemia, sem amplo debate acerca de suas consequências.
Com ajuda de um especialista no tema, Ecoa explica o que é a MP (Medida Provisória) 910, transformada no PL (Projeto de Lei) 2633 -- que propõe mudar os critérios para a regularização de terras públicas não destinadas, ou seja, sem função definida, e deve ir ao plenário da Câmara dos Deputados nesta quarta (20) -- e quais impactos a proposta pode ter no meio ambiente, bem como na vida de povos da floresta e do campo.
O que diz a MP, o PL e como isso afeta o desmatamento
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) editou a MP 910 no final de 2019, ampliando para médias e grandes propriedades a anistia após ocuparem terras públicas, a grande maioria delas na região norte do país. O governo diz que a medida busca desburocratizar a concessão de títulos a agricultores.
No entanto, a oposição chama a medida de "MP da Grilagem", por regularizar latifúndios em áreas recentemente desmatadas. Com vigência de 180 dias, ela venceu nesta terça-feira (dia 19) sem ser votada — o presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) disse que só colocaria em pauta se houvesse acordo entre as bancadas do agronegócio e do meio ambiente, o que não aconteceu.
A MP caducou e saiu de discussão, mas a pressão de parte dos ruralistas fez surgir um projeto de lei (PL 2633) para aprovar o assunto. A medida provisória tinha ampliado o prazo de ocupação das terras (de 2011 para 2018) e o tamanho das propriedades (de quatro para 15 módulos fiscais) que seriam beneficiadas pela regularização. Além disso, empresas poderiam oficializar sua ocupação, o que abriria espaço para investidores de outros Estados.
"O texto desse projeto até amenizou os principais problemas da MP, mas não foi discutido pela sociedade. É um tema de muita importância e não deve ser tratado com essa urgência. Outro problema é que ele sinaliza para os desmatadores que as leis vão mudando, então podem derrubar a floresta que depois vai ser tudo legalizado", diz Raul do Valle, advogado especializado em direito ambiental e diretor de políticas públicas da organização WWF-Brasil.
A derrubada da floresta amazônica está mexendo com o regime de chuvas da região e de áreas como o Sudeste, com impacto desde a agricultura e abastecimento hídricos das cidades, assim como no modo de vida das populações tradicionais. Os indígenas de várias regiões já apontam que várias culturas não prosperam por conta da diminuição da estação chuvosa no Norte e Centro Oeste. Cientistas também alertam que metade da floresta equatorial pode se transformar em savana com a mudança climática.
Quem se beneficia com novas regularizações propostas?
Valle lembra que já no governo de Michel Temer (2016-2018) foi aprovada uma lei que ampliava a anistia a proprietários que ocuparam áreas públicas até 2011. Daquela vez, a MP de Temer foi aprovada pelo Congresso e virou lei.
Antes, pela lei de 2009, durante o governo Lula, quem comprovasse que estava na terra antes de 2004 poderia pedir a regularização. A ideia dessa lei era beneficiar os minifúndios e pequenas propriedades.
Já a MP de Bolsonaro acenava com anistia para quem desmatou e ocupou até dezembro de 2018, ou seja, até depois da eleição do atual mandatário. O atual projeto de lei que tramita no Congresso mantém a data de 2011 estipulada pela lei de 2017.
O tamanho da propriedade a ser legalizada também é importante. A lei atual contempla fazendas de até quatro módulos fiscais (cada MF tem de 5 a 110 hectares, dependendo do município). A MP de Bolsonaro ampliava para 15 módulos fiscais, o que favorecia os latifundiários. O projeto em tramitação amplia para seis MFs.
A questão é complexa porque muita gente migrou para a fronteira agrícola, incentivada pelo governo central, desde muitas décadas atrás. Esses pequenos proprietários precisam da regularização para acessar empréstimos e outras vantagens da oficialização. O problema, segundo Valle, é que isso já estava presente nas legislações anteriores, mas o número de homologações cai a cada ano desde 2016, com a extinção do ministério do Desenvolvimento Agrário e a redução do Incra.
Por outro lado, as novas regras ampliam prazos de ocupação e tamanhos de propriedade, mostrando que intenção é beneficiar quem chegou mais recentemente e tem mais dinheiro. Em nota de fevereiro deste ano, o MPF (Ministério Público Federal) disse que a MP 910 estendia a grileiros de grandes áreas públicas o benefício previsto para assentados de baixa renda em programas de reforma agrária.
Projeto pode acirrar disputa de terras, diz especialista
Segundo Valle, a aprovação da nova lei vai trazer também mais violência no campo pela disputa de terras.
O tema da MP confronta boa parte da bancada ruralista, que tem mais de 200 parlamentares do total de 513, com a oposição ao governo e os deputados ligados ao meio ambiente. Uma parte considerável do Congresso, que acompanha Maia, está escaldada com o período crítico atual e não quer comprometer em assunto tão espinhoso em ano eleitoral.
Para o advogado, um ponto fundamental é ouvir todos os envolvidos — o que não tem sido feito. "Essa regularização fundiária demanda muito debate. Todos têm de ser escutados, não só essa parte da bancada ruralista que não percebe que o desmatamento prejudica a imagem internacional do agronegócio brasileiro e fecha mercados. Temos que aprofundar a discussão, ouvir pesquisadores, trabalhadores rurais, povos tradicionais. Inclusive os índios, porque suas terras estão ameaçadas com essa política do atual governo", diz ele.
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