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'Nunca vi procedimento assim', diz pesquisador sobre morte de João Pedro

Pablo Nunes coordena a Rede de Observatórios da Segurança  - Arquivo Pessoal
Pablo Nunes coordena a Rede de Observatórios da Segurança Imagem: Arquivo Pessoal

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

20/05/2020 12h00

A morte do adolescente João Pedro, de 14 anos, baleado enquanto brincava no quintal de casa no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, município na região metropolitana do Rio de Janeiro, nesta segunda-feira (18), foi vista com surpresa até por quem acompanha de perto a violência sistemática durante operações policiais contra as favelas fluminenses.

Para Pablo Nunes, coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e da Rede Observatórios da Segurança, o protocolo adotado pela polícia no caso de João desrespeitou o procedimento de perícia de maneira surpreendente.

Após ser baleado, João foi colocado em um helicóptero e desapareceu. A família saiu em busca e pediu ajuda nas redes sociais para encontrá-lo. O corpo estava no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo.

"Nunca vi esse tipo de procedimento em operações policiais no Rio de Janeiro, e olha que há bastante tempo as monitoro", diz o pesquisador, em entrevista a Ecoa. O procedimento de remoção adotado, conta, costuma ser um método utilizado para dificultar a investigação e uma possível denúncia no Ministério Público. Mas o sumiço do corpo fugiu à regra de protocolos das próprias forças de segurança.

Pablo coordena as pesquisas da Rede de Observatórios da Segurança, com análises de índices criminais e violência. Um estudo desenvolvido por ele previu mais tranquilidade às favelas fluminenses em relação às operações policiais. Houve queda nas primeiras semanas de isolamento social.

Entre abril e maio, porém, ele avalia que os holofotes virados às milhares de vítimas da Covid-19 deram aval à intensificação da violência nas favelas. Além de João Pedro, moradores carregaram os corpos de cinco pessoas mortas em operação no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio, na sexta-feira (15).

"Parece que as forças policiais se aproveitaram de certa fragilidade causada na rotina da favela pandemia para uma violência injustificada", avalia. São as próprias redes nas favelas que estão buscando meios para monitorar a violência em tempos de pandemia.

Por que mortes como a de João Pedro continuam a ocorrer no Rio de Janeiro?

Toda resposta que eu der vai ser incompleta. É um drama brasileiro de décadas. Não temos como negar o passado escravocrata e o quando ele ressoa até hoje. João é mais um menino negro, jovem, morto por forças policiais. Não é uma coincidência e, por covardia, nunca enfrentamos o problema de frente. Temos solidariedade, mas não podemos deixar de dar papel e importância à responsabilidade de governantes, que hoje ocupam lugares de comando federal e estadual. O governador Wilson Witzel, por exemplo, se elegeu dizendo que botaria o "fuzil na cabecinha". Há sangue nas mãos dele e uma visão de que os moradores das favelas são uma população a ser abatida. Agora ainda com a leniência causada pelo novo coronavírus.

O corpo de João Pedro foi colocado em um helicóptero e a família não recebeu notícia do paradeiro. Este é o procedimento padrão? Como seria o procedimento padrão?

Há muita coisa injustificada. Uma dessa é a retirada do corpo pelo helicóptero da polícia civil. Nunca vi esse tipo de procedimento nas operações, e olha que tem bastante tempo que eu as monitoro. Pelo histórico da polícia no Rio de Janeiro, sabemos que feridos são removidos e levados ainda em vida para tratar de ferimentos que depois mostravam-se fatais somente para desfazer o local do crime. Ainda é nebuloso o que acontece com João, mas posso te afirmar que nunca vi este tipo de procedimento [de colocar o corpo em um helicóptero e desaparecer].

Como a pandemia afetou a violência por operações policiais no Rio de Janeiro?

Verificamos uma diminuição na violência contra as favelas em março, com 74% a menos de operações policiais após ser decretado estado de emergência devido à pandemia no Estado [o número de mortes durante ações policiais passou de 36 para 15, nove delas tendo ocorrido após o decreto de situação de emergência; dos 31 feridos registrados no mês, 15 foram vitimados também durante a vigência do decreto].

É compreensível: policiais se preocuparam com os EPIs e foram alocados para diminuir a circulação de pessoas em outros pontos da cidade, por exemplo. A vida na comunidade também esteve mexida, com circulação reduzida por conta de toques de recolher do tráfico. A polícia parece que se aproveitou desse momento de fragilidade para promover operações, causando uma violência injustificada que rompe com qualquer protocolo. Os dados que temos sobre a violência no último mês ainda devem ser atualizados.

No Rio de Janeiro tentou-se o modelo das Unidades de Polícia Pacificadora, que apresentou desgaste ao longo dos anos. Também houve uma intervenção militar. Qual é o legado prático deixado por esses modelos de interferência?

Praticamente, nada. Quando foram instaladas, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) tiveram um impacto muito grande na redução de mortos, letalidade policial e criminalidade. Mas minguaram com o fim de eventos como as Olimpíadas e da Copa do Mundo, e as fases que dariam continuidade ao projeto não acumularam experiências práticas para ir adiante. A intervenção militar também não desenvolveu um sistema de inteligência, com compartilhamento de dados, e investimento em material para a perícia, que estão chateados até hoje. Mas houve mais blindados, mais coletes à prova de bala. No meio da intervenção, ocorre a morte da vereadora Marielle Franco. É um momento amargo para o carioca.

Como as iniciativas das próprias favelas estão trabalhando com este momento, no qual há a Covid-19 e a violência policial?

Em junho, pretendemos lançar um relatório sobre a violência nas favelas. A ONG Redes da Maré também faz boletins semanais sobre a Covid-19 e a violência das favelas da Maré. Também há o coletivo Papo Reto e o Renê Silva, do jornal Voz das Comunidades, que fazem a comunicação entre as favelas. Também há o apoio, já clássico, da Anistia Internacional em discutir soluções para esse momento.

O que poderia ser criado para evitar a morte de inocentes em operações policiais como essa?

A primeira coisa é entender que a intervenção do estado não é apenas a do braço armado. O estado chega pelo braço do fuzil nas favelas.

Uma das saídas, mais práticas, é estimular uma política para transformar a polícia em promotora de direitos, não violadora de direitos. Um exemplo: verificar quais batalhões tem altos índices de letalidade policial.

Há o caso do 41º Batalhão, que sempre teve histórico alto de letalidade. Com a troca do comandante, houve uma queda expressiva. Outra saída é seguir os protocolos de operação que, mesmo desrespeitados, são um legado da intervenção militar. O corpo deve ser devidamente periciado para se verificar em quais circunstância se deu a morte.

O investimento mais básico seria investimento na criação de protocolos para definir o que deve ser feito pela polícia. O que aconteceu com João, de colocá-lo em um helicóptero, dificulta a obtenção de provas na investigação. Um bom investimento em perícia poderia fazer que casos como esse cheguem ao Ministério Público com provas mais consistentes. Muitas das vezes, o MP não consegue elementos comprobatórios. Provavelmente, é o que vai acontecer com mais este menino.

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