Famílias recebem crianças em casa e ajudam abrigos na pandemia
Uma busca pela palavra "tédio" na internet vem acompanhada rapidamente por "quarentena". Como lidar com o tempo livre dentro de casa durante o isolamento social recomendado pela Organização Mundial de Saúde? A publicitária e dona de casa Shirley Haint, 51, não teve nem tempo para pensar nisso.
Separada e morando em São Paulo com os três filhos, Luana de 23, Marina, de 19, e Nicolas, de 13, ela está dividindo a rotina com dois novos integrantes da família: um bebê de três meses e um de garotinho de dois anos e meio.
"Aqui em casa não tem monotonia. É troca de fralda, mamadeira, dar colo, brincar de bola. Estamos nos dividindo. É uma fase que demanda muita atenção, mas que está longe de dar cansaço. Criança é alegria, vida, renova minhas energias e me dá força para seguir em um momento de tanta incerteza", diz Shirley, que acolheu os meninos em momentos diferentes.
O bebê está com ela desde março. Já o garoto chegou no começo de maio, quando o abrigo em que estava confirmou a primeira infecção pelo novo coronavírus. A medida encontrada pela instituição foi agilizar processos de acolhida que estavam em andamento, evitando ao máximo o aumento do contágio. Shirley é cadastrada no programa de acolhimento e topou receber mais uma criança.
Desde 2009, com as alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o acolhimento familiar passou a ser prioritário em relação ao institucional (abrigos e casas-lares). Qualquer criança ou adolescente em situação de risco e afastado de sua família biológica por determinação judicial deve ser inserido, preferencialmente, em um ambiente familiar. O acolhimento tem caráter transitório, até que a criança possa retornar a sua família de origem ou seja encaminhada para adoção, após decisão judicial.
Com a pandemia, a prática da acolhida em lares passou a ser estimulada. A recomendação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) é de que as pessoas ou famílias habilitadas recebam mais de uma criança ou adolescente de uma vez nesse período, como fez Shirley. Já as diretrizes de adoção passaram a facilitar a guarda provisória a pretendentes habilitados, em casos de crianças e adolescentes que já estão em estágio de convivência para adoção — ou seja, em contato com as famílias.
Para o psicólogo Élio Braz Mendes, juiz titular da 2ª Vara da Infância do Recife, a convivência dentro de uma família é fundamental para crianças e adolescentes, daí a importância da acolhida. "Por mais que uma instituição proteja a criança, seja um lugar seguro, ela nunca irá substituir o papel de uma família. A família é um fenômeno cultural, não um produto do Estado."
Prática ainda é pequena no Brasil
Apesar de garantido pela legislação brasileira e bastante difundido em outros países, o acolhimento familiar encontra certa resistência para se firmar no Brasil. Segundo dados do CNJ, menos de 4% das crianças abrigadas estão em famílias acolhedoras. Um dos motivos é a falta de conhecimento de como a medida funciona.
Shirley, que até 2018 nunca tinha ouvido falar sobre a iniciativa, se interessou pelo tema quando participou de uma palestra do Instituto Fazendo História, entidade que trabalha buscando fortalecer o desenvolvimento de crianças e adolescentes acolhidos por meio da capacitação de famílias acolhedoras e apadrinhamento familiar. "Durante a palestra, eles falaram sobre várias iniciativas: apadrinhamento, acolhida. Na hora, me interessei. Eu já tinha sido voluntária em brinquedotecas e berçários, mas sentia vontade de fazer algo mais pelas crianças", conta.
É um procedimento legal no qual um indivíduo é assumido como filho por uma pessoa ou um casal. A medida tem caráter definitivo e irrevogável. A pessoa interessada em adotar deve procurar a Vara da Infância e da Juventude mais próxima de sua região.
É uma ação protetiva e temporária, regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, indicada de forma prioritária ao acolhimento institucional para crianças e adolescentes em situação de risco social. Não é um atalho para a adoção, e acontece em residências de famílias cadastradas selecionadas.
Promove encontros e vínculos afetivos seguros e duradouros entre crianças acolhidas e pessoas que se dispõem a ser padrinhos e madrinhas. O objetivo é ampliar a rede de proteção. Previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, não envolve a guarda nem a tutela legal.
Para fazer parte do programa, Shirley passou a frequentar reuniões de formação do Instituto. Orientado por psicólogos e assistentes sociais, o processo leva cerca de quatro meses. "Nesse período conhecemos de perto a realidade das famílias de origem, a situação que as levou a procurar ajuda", conta. Depois, há encontros com quem também faz o acolhimento. "Cada criança é uma história diferente. A troca de experiências é grande", diz ela. Na reportagem, não há foto das crianças acolhidas por Shirley neste momento em respeito a processos legais da prática.
Para a publicitária, a despedida é o momento que mais desperta curiosidade nas pessoas. "A pergunta que mais ouço é: 'Mas como você fica quando a criança vai embora? Você não se apega?'. Entendo a curiosidade, mas isso é feito de uma forma gradual, não é do dia para a noite que a criança retorna para a família biológica ou é encaminhada para a adoção. Durante o acolhimento, temos de manter contato não só com assistentes sociais, como também com a família de origem", explica.
"Agora, é claro que a gente sofre um pouquinho de saudade, né? É normal. Afinal, estamos ali justamente para isso: dar afeto, criar um vínculo. Eu ainda tenho contato com duas crianças que acolhi, mas nem sempre isso acontece. Durante a nossa formação isso é deixado bem claro. A decisão de manter ou não uma proximidade é sempre da família biológica ou de quem vai ficar com guarda definitiva", conta.
Quando a criança sai de sua família biológica que, por algum motivo, não teve condições de protegê-la, ela tem de repactuar com quem vai cuidar dela. E o melhor pacto não é com uma instituição. Por mais que funcionários sejam afetivos, estão ali trabalhando. Numa família acolhedora, mesmo que ela vá depois para uma família adotiva ou retorne para a biológica, não passa por esse processo diário de abandono
Élio Braz Mendes, psicólogo e juiz titular da 2ª Vara da Infância do Recife
Segundo a coordenadora e assistente social do Instituto Fazendo História, Sara Luvizotto, o objetivo principal é que as crianças possam retornar ao lar de origem. "Se a mãe está em uma situação de vulnerabilidade, buscamos ajuda para que ela saia desse cenário o mais rápido possível — seja com encaminhamentos médicos, inclusão no mercado de trabalho. Quando são esgotadas as possibilidades de retorno, e isso é analisado também judicialmente, a criança é encaminhada para a adoção. Por isso a importância de um acompanhamento e do contato com a família de origem e a acolhedora."
No serviços de acolhimento do Instituto, 40% dos casos ocorrem pelo uso abusivo de drogas e situação de rua dos pais. Com a pandemia do novo coronavírus, o encontro de pais biológicos com as famílias acolhedoras precisou se adaptar. Quando é possível e acessível o uso de tecnologias, chamadas de vídeos são feitas entre as famílias, acompanhadas por assistentes sociais.
Para a publicitária, o acolhimento familiar transforma não só a vida de quem é acolhido, mas de quem acolhe. "Quando cuidamos da primeira criança, foi uma alegria aqui em casa. Meus filhos passaram a me ajudar ainda mais, são muito parceiros. Toda criança que chega, eu compartilho com eles a história dos pais biológicos. E isso é importante para que cresçam com um olhar mais sensível para as desigualdades. Reconhecer a importância do cuidado é essencial, principalmente nesse momento de pandemia", diz ela.
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