Análise de sonhos pode ajudar a enfrentar sofrimento na pandemia
Imagine só: você acorda atrasada para o trabalho. No trajeto, em meio a pressa para começar o expediente, percebe que vestiu uma roupa que deixa suas pernas à mostra. Então, decide voltar para casa para se trocar. Começa a se sentir mal, com raiva e frustrada porque nenhuma peça fica boa o suficiente. Além disso, a cada minuto que passa você se atrasa mais. Para piorar, quando entra no banheiro encontra uma multidão te olhando. O que te deixa com ainda mais raiva e desconfortável.
Corta para o décimo andar de um prédio. Você está lá em cima, olhando pela janela. De repente, vê um ônibus escolar passar lotado e em alta velocidade. Tudo acontece rápido demais. Quando percebe, houve um acidente e você se sente extremamente impotente por não poder ajudar de alguma forma.
Estes dois eventos, na verdade, são relatos de sonhos colhidos por uma equipe de pesquisadores liderados por Natália Mota, neurocientista, psiquiatra e pesquisadora do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). A ideia era tentar encontrar nessas experiências oníricas algumas respostas para o que cada pessoa tem vivenciado acordada durante a quarentena estabelecida pelo novo coronavírus.
Seria possível dizer que uma pessoa tem propensão ou está em sofrimento mental por meio do monitoramento dos sonhos que ela tem? Prestar atenção nesses sonhos contribuiria de alguma forma para encontrar saídas que pudessem ajudá-la a superar esse quadro negativo?
Estamos passando por um momento que exige de cada um muita criatividade para lidar com essa nova realidade. Tem gente perdendo emprego, gente com familiar doente, gente longe das pessoas que ama, com medo de perder pessoas queridas. Cada uma tem desafio pessoal e tem que sobrepor esses medos, essas angústias para poder ultrapassá-los da melhor maneira possível. E os sonhos podem ser uma ferramenta importante para ajudar nesses processos.
Natália Mota, psiquiatra e neurocientista da UFRN
Coleta de sonhos via algoritmo
Essa história, porém, começa anos antes. Desde 2016 a neurocientista desenvolve um projeto em que consegue reduzir o tempo de diagnóstico de pessoas com esquizofrenia. Por isso, acabou se tornando a única cientista sul-americana indicada ao prêmio da revista científica "Nature" em 2019 — o Nature Research Award, na categoria Ciência Inspiradora. Acontece que o resultado das análises para detectar a doença hoje é dado em um período de dois anos, pois requer acompanhamento e uma minuciosa avaliação clínica.
Ao desenvolver um algoritmo computacional que consegue identificar a organização do pensamento por meio da fala do paciente, ela reduziu o tempo de diagnóstico para 30 segundos. Foi esse mesmo mecanismo que usou para desenvolver um aplicativo que coletasse os sonhos por meio de áudios curtos.
"Queríamos que esse tipo de avaliação pudesse ser uma ferramenta para profissionais da saúde usarem com populações que estão muito isoladas, como várias pessoas no interior do Brasil que não têm acesso a um psiquiatra perto e passam meses esperando uma consulta. A ideia é que pelo menos essa parte da avaliação pudesse ser mais rápida, mais acessível", conta.
Ela passou, então, de setembro a novembro coletando relatos de sonhos pelo aplicativo, tarefa que fazia parte do pós-doutorado. Conseguiu cerca de 31. Mas chegou 2020 e, com ele, uma pandemia. Logo, ela e os pesquisadores da UFRN imaginaram que esse período poderia acarretar em algum tipo de transtorno mental e que, talvez, pudesse ser possível identificá-lo logo no começo, por meio da análise dos sonhos. Assim, desde que a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou pandemia, eles passaram a coletar esses dados com adultos que já possuíam algum tipo de sofrimento mental e com outros completamente saudáveis. Ao todo, foram 210 sonhos de 31 voluntários coletados durante a quarentena.
Mudança de rotina afetou sono
Nos dois primeiros parágrafos deste texto, são descritas experiências oníricas de voluntários do estudo. Neles, aparecem alguns sentimentos, como raiva, frustração, desespero por estar atrasada, desconforto, impotência. É essa construção narrativa dos sonhos o ponto-chave para uma análise mais aprofundada.
Para isso, algumas etapas foram necessárias: os neurocientistas criaram um mapa de palavras utilizando todos os textos da Wikipédia em português para conseguir identificar "palavras vizinhas", ou seja, quais palavras aparecem próximas a outras com frequência. Depois, aplicaram Escala das Síndromes Positiva e Negativa (PANSS), que funciona como uma entrevista psiquiátrica estruturada em que o psiquiatra dá notas para os sintomas positivos e negativos que observa. Gradua de 1 até 7 a gravidade do sintoma descrito pelo paciente.
Como o estudo foi realizado no começo da pandemia, Natália explica que os resultados preliminares estão mais relacionados a mudanças bruscas de rotina, hábitos e comportamentos causadas pela crise. Sendo assim, se comparado aos sonhos pré-Covid-19, os relatos durante a quarentena começaram a apresentar conteúdos relacionados a questões de higiene. Segundo a neurocientista, essas experiências relacionadas a contaminação ou limpeza nos sonhos estão relacionadas a essa pressão de garantir a sobrevivência no dia a dia. Foram as pessoas que mais sonharam com esse tipo de conteúdo que apresentaram maior sofrimento psíquico.
"O que a gente percebeu foi que têm uma correlação, tem uma associação dessas peculiaridades dos sonhos com esse sofrimento mental. Principalmente quando aparece no sonho algum conteúdo de limpeza, que aparece com mais força para pessoas que estão sofrendo mais com adaptação das suas relações sociais, não estão conseguindo manter as relações com a mesma qualidade, se sentem distanciadas, por exemplo", explica Natália.
A importância de monitorar os sonhos
São exatamente nesses momentos de maior pressão em que a sobrevivência está em risco que os sonhos passam a funcionar melhor, se transformando, assim, em um mecanismo de preparação e reelaboração de possíveis traumas. Basicamente, é como se uma das funções do sonhar fosse ser responsável pelo processamento do que vivemos quando estamos acordados.
"Vários pesquisadores veem essa função fisiológica do sonho como uma espécie de metabolização, principalmente de emoções negativas. Quando esse trauma é menos intenso você consegue digerir nesse processo de sonhar, e aquilo pode ser editado e exposto ao sonhador de uma maneira mais amena", afirma.
Foi pensando nisso que o estudo buscou entender também de que forma o monitoramento dessas experiências poderia influenciar a vida de quem as tem. Será que analisar os sonhos deixaria as pessoas mais felizes? Mais calmas? Ou só causaria sentimentos negativos, como confusão ou ansiedade?
Para responder essas perguntas, os voluntários foram submetidos a um questionário online. Os resultados foram positivos: os que apresentaram conteúdos mais negativos nos sonhos conseguiram elaborar melhor as experiências e se disseram mais bem resolvidos, felizes ou criativos.
É como se eu tivesse sonhando por um mês sobre coisas ruins, mas por estar analisando e pensando nesses sonhos, eu conseguisse ressignificar. Só muito recentemente a gente parou de olhar para os sonhos. As grandes civilizações, os grandes impérios tinham muito fortemente a cultura de olhar para os sonhos como uma maneira de buscar inspiração para algo que seja uma mudança importante que precisa acontecer.
Natália Mota, psiquiatra e neurocientista da UFRN
Por isso, ela diz que os sonhos podem ser uma boa fonte de inspiração, e aconselha as pessoas a estarem atentas a eles. De forma geral, por estar em um momento único da história, todos vivenciam algum tipo de pressão traumática importante, de acordo com os desafios de cada um. "Como o sonho tem em si toda essa característica muito individualizada, muito pessoal, ele pode ser uma ferramenta importante de autoconhecimento nesse momento de angústia. Também pode servir como uma maneira importante de trazer inspirações e ideias novas para ultrapassar esses desafios cotidianos de cada um."
Sonhos loucos de pandemia
Basta uma passeada breve pelas redes sociais para encontrar relatos de sonhos completamente esquisitos que as pessoas passaram a ter durante a quarentena. A sensação que dá é que agora, isoladas, as pessoas passaram a sonhar mais. Mas é só uma sensação. Na verdade, o que acontece, é que as pessoas passaram a lembrar mais dos sonhos. A frequência, muito provavelmente, continua a mesma. Natália explica que inclusive toda a bizarrice relatada em sonhos pela internet é comum. Isso é da natureza da experiência onírica. De novo, o que muda é a nova rotina estabelecida.
"As pessoas agora estão tendo mais disponibilidade de dormir e despertar sem tanta pressa de sair correndo para trabalhar, por exemplo. Só isso já muda muita coisa." Ela diz que o fato de poder passar um tempo na cama após despertar já aumenta a possibilidade de se lembrar do sonho. Muitas vezes, durante períodos mais "comuns" da vida, os sonhos também possuem conteúdos malucos, completamente fora da realidade, mas a pressão do dia a dia torna-se um impeditivo para conseguirmos acordar lembrando de tudo que foi sonhado.
Ela ainda ressalta um ponto importante: por mais que a rotina esteja mais parada, limitada a um único ambiente, o cérebro não para. Na verdade, para algumas pessoas, é possível dizer que durante a quarentena as atividades cerebrais até aumentaram. Não é porque sua rotina está parada que a mente não possui recursos para produzir experiências oníricas. A neurocientista explica:
"O que é matéria-prima para o sonho não é exatamente o que você faz em termos físicos, mas o impacto emocional que alguma situação ou memória tem para você. Muitas vezes é mais significativo uma notícia no jornal que te dá uma angústia, do que um dia inteiro resolvendo um bocado de pepinos rotineiros que nada te emociona. Geralmente, vivemos coisas tão rotineiras que não marcam, não colocam nosso cérebro em alerta. No nosso dia dia o que é mais importante para o sonhar é o impacto emocional que uma situação te traz."
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