O que significa estratégia de Salles de usar dados incorretos?
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, teria "desviado do assunto" e informado dados incorretos em entrevista exclusiva ao UOL ontem (25), segundo instituições ambientais. Os dados foram checados ao vivo nas redes sociais por meio da hashtag #ChecaSalles.
A entrevista dada ao jornalista Diogo Schelp aconteceu após divulgação de vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, em que o ministro teria sugerido "passar a boiada" durante a crise. O ministro não se disse arrependido, mas que a fala receberia uma "introdução" maior sobre a pandemia do novo coronavírus caso se soubesse que o vídeo viria a público.
Além do uso de dados incorretos, checados em tempo real, chamou atenção o discurso escolhido pelo ministro. Ecoa convidou a doutora em linguística e fonoaudiologia Claudia Cotes para analisar a entrevista.
Para ela, Salles mescla formalidade a expressões que transmitem "artificialidade", como se o ministro decorasse falas para serem ditas diante de um tribunal ou a um grupo de advogados. O ministro é formado em Direito e justificou a atuação de sua gestão com escolha de palavras complexas, ligadas ao mundo jurídico.
A especialista destaca termos como "intróito", "contém erro de mérito", "coaduna" e "esfuziante". Durante a entrevista, Salles foi questionado sobre termos como "infralegal" e precisou dar uma explicação sobre o termo. As falas são misturadas a expressões populares.
Além disso, o ministro também demonstra inquietação ao mexer nos óculos e se arrumar na cadeira ao falar. "Falar difícil não é sinônimo maior de clareza", diz a linguista. "Durante a pandemia, devido ao sofrimento deste período, muitos líderes mundiais se mostram realmente solidários e a comunicação tende a ficar menos formal, mais clara, genuína, objetiva, afetiva e verdadeira. Não é o caso do ministro".
Nas redes, a fala de Salles foi vista como uma maneira de "sair pela tangente" e não oferecer precisão nos dados, especialmente importantes quando se discute desmatamento e meio ambiente.
O Ministério do Meio Ambiente foi procurado pela reportagem, mas não respondeu às solicitações até a publicação.
Fundo Amazônia
O ministro do Meio Ambiente afirma que haverá mais dinheiro em caixa para serviços ambientais quando houver "dinheiro dos créditos de carbono para pagamento de serviços ambientais".
O crédito de carbono é uma das bandeiras de Salles. Empresas podem "comprar" uma cota para a emissão de gases relacionados à emissão dos gases do efeito estufa e operar normalmente. A expectativa de Salles seria que o dinheiro relacionado aos créditos pudesse ajudar na pauta ambiental brasileira.
No Twitter, entidades e ambientalistas questionaram a justificativa dada pelo ministro. No ano passado, Salles questionou a entrada de R$ 3 bilhões para o Fundo Amazônia vindos de países europeus. O entrave causou atrito, e dificultou a gestão dos recursos para a pauta ambiental.
Emissão de gases
Durante entrevista, Salles procurou reforçar a tese de que "o Brasil não é o vilão das emissões dos [gases] de efeito estufa no mundo". Mas dados de observatórios ambientais e de poluentes sugerem o contrário.
O Brasil foi o sexto maior poluidor do mundo em 2018, de acordo com dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) divulgado no final do ano passado. Dados preliminares da mesma instituição calculam aumento de 10% a 20% de gases ligados ao efeito estufam em 2020, o que coloca o país na chamada "contramão do mundo" no período.
Relatório sobre diminuição de multas seria "militância"
Salles também afirmou que relatório da ONG Human Rights Watch — o ministro errou o nome da organização diversas vezes — sobre multas relacionadas ao meio ambiente seria "militância". A fala foi criticada e rebatida por instituições ambientais.
"O decreto presidencial n° 9706/2019 institui o Núcleo de Conciliação Ambiental. É uma espécie de balcão da impunidade, pois cria um tribunal que terá a palavra final sobre as multas ambientais aplicadas, desautorizando a atuação independente dos fiscais. O governo criou uma etapa burocrática que neutraliza o Ibama e não funciona. Quem foi flagrado no crime, ganha a possibilidade de recorrer e nunca ser efetivamente julgado ou terem suas multas anuladas. O relatório da Human Rights Watch não mente, as multas por desmatamento ilegal na Amazônia do Brasil foram, na prática, suspensas sob o decreto do presidente Jair Bolsonaro", explica Luiza Lima, porta-voz de Políticas Públicas do Greenpeace.
Desmatamento
"Nos últimos 16 meses, foi feito um esforço muito grande para atacar as causas do desmatamento", disse Salles. A afirmação foi rebatida pela WWF-Brasil.
Durante a gestão Salles, foram demitidos o coordenador de operações de fiscalização, Hugo Loss, e o coordenador-geral de fiscalização ambiental, Renê Luiz de Oliveira. Já havia sido afastado o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Alves Borges de Azevedo, indicado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. "O que se viu foi uma série de medidas que fragilizaram os órgãos de controle", pontuou a instituição.
Em abril, dados do Imazon mostram recorde de desmatamento em 10 anos no país, com reservas naturais e terras indígenas perdendo área verde.
A instituição WWF-Brasil pontua que dados de observatórios do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe) registrou, de 1 de janeiro de 2019 a 7 de maio 2020, alertas de 10.703 km2 em desmatamento.
Apenas em 2019, no primeiro ano da gestão Salles foram 9.167 km2, número 90% maior que a média dos três anos anteriores de acordo com a instituição. Só este ano, o desmatamento acumulado entre 1º de janeiro e 7 de maio de 2020 atingiu uma área de 1.536 km2. O aumento foi de 65% em comparação ao mesmo período em 2019 e mais do que o dobro da média dos últimos 10 anos (678 km2).
Na entrevista, Salles relativizou a questão ao dizer que "84% da floresta está preservada no país". Claudio Ângelo, do Observatório do Clima, afirma que o dado é fruto de um estudo da Embrapa, no qual 84% da Amazônia está coberta por vegetação nativa. "80% da Amazônia subsiste, mas isso são as florestas. E elas não estão intactas: segundo contas do Antonio Nobre, pode haver mais de 1 milhão de km2 de florestas rebrotadas na Amazônia, então a área intacta tende a ser muito menor", diz.
A WWF-Brasil pontua, a partir de dados do Inpe, que o bioma Amazônia perdeu 19% de sua área original - portanto, 81% é preservado, e não 84%. "A diferença entre a alegação que o ministro apresenta e os dados oficiais é igual a quase o Estado do Amapá. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o bioma Amazônia perdeu, até 2018, uma área de 788.352 km2 dos seus 4,2 milhões de km²".
Salles: afirmou que "84% da floresta está preservada" e "depois de 500 anos de ocupação, temos só 16% do bioma alterado". É FALSO. bioma Amazônia perdeu 19% de sua área original - portanto, 81% é preservado, e não 84%. #ChecaSalles Essa "diferença" é quase o estado do Amapá pic.twitter.com/JB70LiRXTm
-- WWF-Brasil (@WWF_Brasil) May 25, 2020
"Passar a boiada"
Salles também diz não se arrepender do termo "passar a boiada" em reunião com os ministros no dia 22 de abril. Segundo ele, sempre houve uma defesa da desburocratização do estado. No mesmo período, o Planalto tentou votar a MP-910, batizada como "MP da Grilagem" por dar condições para se ampliar o desmatamento no país. O ministro usa outro termo: "regulamentação fundiária".
"O PL 2633/20, derivado da MP 910/2019, de autoria de Bolsonaro, e defendida por Ricardo Salles, não irá solucionar o problema, mas sim agravá-lo, se for aprovado. A proposta não traz nenhum benefício aos agricultores familiares e pequenos produtores, apenas garante facilidades de titulação gratuita a médios e grandes invasores e desmatadores de terras públicas no país, aumentando ainda a noção de impunidade e de que o crime compensa", diz a porta-voz do Greenpeace.
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