Saída contra racismo em aula é escola antirracista, dizem especialistas
Uma estudante negra de 15 anos foi alvo de comentários racistas por colegas de classe em um grupo de WhatsApp na semana passada, no Rio de Janeiro. Não é a primeira, nem a última atingida por um sistema educacional que não oferece uma abordagem antirracista para a educação, como defendido por educadores e especialistas. Mas como inserir um problema tão estrutural, do mundo dos adultos, entre crianças e adolescentes?
Fatou Ndiaye, 15, filha de senegaleses, recebeu prints de mensagens em que colegas sugeriram trocar "dois índios por um africano", "1 negro vale uma jujuba, 1 negro vale um pedaço de papelão". "Eu não fiquei triste porque sei quem eu sou, eu sei qual é a minha história, não vou deixar quatro pessoas que não conhecem nada de mim me abalarem", disse a estudante em entrevista ao UOL. A família da jovem decidiu afastá-la das aulas, online devido à pandemia. Cinco alunos foram afastados somente nesta quarta (27) e a direção aguarda a investigação da polícia para decidir se serão expulsos.
Especialistas defendem a criação de uma pedagogia antirracista, em que o racismo seja combatido e pessoas negras sintam-se representadas e confortadas. O primeiro passo é incluir negros no corpo docente, no currículo escolar e até penalizar instituições que não ensinam a história do povo negro e africano, como manda uma lei de 2003.
Após o caso, a direção do colégio emitiu uma nota em repúdio. A atitude, no entanto, foi rebatida pela estudante. A cobrança por um posicionamento mais rígido também ganhou força fora da escola.
Fatou não está sozinha
"A gente tem que parar com esse negócio de notinha de repúdio, que não vale muita coisa para punir", defende a artista Leci Brandão. Deputada estadual em São Paulo, Leci assinou a criação de uma central de denúncias contra racismo e um projeto de lei para incluir o combate ao racismo no material didático estadual. O programa está em uma comissão, na última etapa antes de ser votado.
Leci ouviu insultos bem similares aos feitos contra Fatou. Quando ainda cursava o ensino médio em um colégio tradicional no Rio de Janeiro, era apelidada de "Tiziu", em referência ao pássaro de mesmo nome com a coloração preta.
A discriminação virou música. "Desde criança, teve a lição/ Viva a Abolição! / Mas na sala de aula, apelido Tiziu/ Desde pequeno, ouviu", recita para Ecoa o trecho da composição do álbum Cidadã Brasileira, de 1990. "Muita coisa prevista por lei fica no papel, e os negros ainda são apresentados como escravizados. Nunca se retrata a história dos grandes heróis africanos e afrobrasileiros. A ancestralidade da população negra é colocada apenas como senzala, como escravo", pontua a artista.
Desde 2003, uma lei obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira, especialmente no campo artístico, da literatura e da história dos negros e dos povos africanos na criação da identidade brasileira. Leci defende uma lei que também estabeleça penas, nem que sejam administrativas, às instituições que não abordarem o tema.
Lei pede inclusão
A lei 10.639 vale para escolas públicas e privadas, mas não diz como executá-la, nem estabelece penalidades a quem ignorá-la ou ferramentas de fiscalização. Casos de descumprimento costumam ser resolvidos na Justiça.
Em 2018, o Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) conseguiu na Justiça fluminense o direito de investigar e exigir o cumprimento da lei no município de Duque de Caxias em todas as escolas municipais, estaduais e particulares. No ano anterior, promotores de Minas Gerais conseguiram exigir ensino da história africana e negra em todos os colégios de Uberlândia, sob pena de multa de R$ 10 mil a R$ 1 milhão.
O único direcionamento claro na lei é a instituição do "Dia da Consciência Negra" no calendário escolar. Mesmo importante, a educadora Janine Rodrigues pontua que o dia 20 de novembro costuma ser a única data em que o tema é abordado nos colégios.
"Há poucos professores negros e há uma estrutura em nossa sociedade criada para tê-los em menor número. A percepção das crianças, então, é de que o negro é uma cultura exótica. Se uma criança negra cresce nesse meio, há a sensação de não-pertencimento" diz.
Em 2017, dados do Inep mostram que apenas 4,3% dos professores no ensino médio declararam-se como negros. No ensino fundamental, o número de professores que se declaravam como negros foi de 4%. São os últimos números disponíveis, embora a tendência tenha sido de alta nos últimos anos. Em contrapartida, 46% se autodeclararam como brancos no ensino médio. No ensino fundamental, 41% dos professores eram brancos.
"Os adolescentes brancos que cometeram um ato racista foram educados por uma sociedade estruturalmente racista, mas que pode ter sido potencializado por questões familiares. Por isso, também é importante aproximar a família do tema", defende.
Iniciativas
Em Salvador, os alunos do professor de sociologia Otávio Alvarenga, que é branco e leciona em uma escola estadual com 2.600 jovens, receberam a tarefa de produzir um documentário com familiares negros mais velhos e também crianças. A ideia do professor era discutir a identidade negra nas famílias. A produção "Agò" estreou para pais e alunos durante um fórum racial promovido pela escola, no final do ano passado.
"A consciência racial e identitária é muito grande em Salvador, mas os alunos precisam se sentir representados nas discussões", diz. Mesmo com forte bagagem identitária, ele diz que alguns alunos ainda tinham receio de dizerem que são negros, ou transformavam em piadas e humor a própria racialidade.
Por isso, além do filme, foi criado um fórum para discutir desigualdade, um desfile, oficina de turbante e debates com temáticas raciais e sociais. As oficinas de audiovisual retornarão assim que as aulas presenciais forem retomadas.
Para identificar e apoiar pesquisas que apontem soluções em prol da equidade racial na escola, foi lançado o "Edital Equidade Racial na Educação Básica: Pesquisa Aplicada e Artigo Científico", com inscrições até 13 de junho e bolsas que chegam a R$ 150 mil. "Quando trabalhamos equidade racial dentro das escolas, incidimos nessas dificuldades que o alunado está vivendo e possibilitamos uma educação de qualidade", explicou ao site do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, o diretor Mario Rogerio, diretor do grupo, responsável pelo edital realizado pelo Itaú Social e Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert).
Pedagogia antirracista é o caminho
O professor de psicologia da Universidade de São Paulo, Alessandro de Oliveira dos Santos, afirma que o racismo não pode ser lido como uma patologia, mas parte de uma estrutura histórica existente na sociedade brasileira. Em países como os Estados Unidos, onde houve políticas segregadoras institucionalizadas e culturais, o racismo manifestou-se por meio da segregação e apartheid. Já no Brasil, a herança católica-ibérica criou relações étnico-raciais que operam sobre uma tríade: intimidade, proximidade e violência.
Na Universidade de São Paulo, onde apenas 2% dos educadores são negros, Alessandro desenvolve uma pesquisa pela Fapesp para investigar justamente como essa estrutura afeta o bem-estar psicológico de universitários negros.
Segundo o professor, a violência emerge quando há uma situação de conflito e disputa. Por exemplo, quando um negro estuda em uma escola ou universidade de maioria branca. Devido ao seu aspecto estrutural, o professor explica que há espaços determinados, que negros e brancos devem ocupar, para alimentar a normalidade da estrutura. Ou seja: espera-se que um porteiro de uma universidade seja negro, mas não um diretor.
Se as relações étnico-raciais operam como o esperado, a proximidade dificulta a compreensão da existência da discriminação racial. No debate de gênero, exemplifica o professor, há termos para entender pequenas agressões, como "mansplaining" (quando homens explicam coisas a uma mulher em tom paternalista) ou "bropriating" (quando homens se apropriam de argumentos usados por uma mulher como se fossem deles). Atitudes ligadas à raça ainda carecem de termos.
"O brasileiro, então, tende a entender que o racista é só o membro da Ku Klux Klan ou um white power", diz. Aos negros que se movem pela estrutura e ocupam espaços inesperados, o professor diz que pode haver o sofrimento causado pelo não-pertencimento. O racismo é introduzido como um processo de aprendizagem de como as coisas funcionam desde a infância. Por isso, é assimilado até por quem está também pelos mais jovens.
Inclusão mútua
Para a professora em psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Lia Vainer Schucman, a reversão desse processo pode ser feita a partir de uma pedagogia antirracista que tenha o compromisso aberto com a contratação de profissionais negros para dar aulas e apresentar histórias positivas sobre a identidade negra. Nem sempre é fácil.
Em seu livro, no qual investiga as hierarquias raciais na branquitude paulistana, a doutora em psicologia pela USP estampou a foto do muro de uma escola municipal no bairro do Limão, em São Paulo, com a pichação "Vamos cuidar de nossas crianças brancas". Na ocasião, o colégio promoveu uma festa junina com elementos de origem africana.
A união entre pais e a iniciativa da escola para alcançá-los pode ser uma das saídas para casos como o de Fatou, Leci e tantos outros estudantes negros. Uma das consequências para estudantes negros que sofrem esse tipo de ataque pode ser a depressão, o isolamento e ainda a evasão escolar, explica a professora.
"Os pais brancos também devem garantir que os filhos estudem com negros. É uma das coisas que se deve fazer para não viverem em uma bolha. Ter uma boneca negra nesse espaço, por exemplo, não serve só para o negro ser incluído, mas para o branco não se sentir como centro do mundo", diz. "Um adolescente de 14 anos ter uma atitude racista levanta a questão: qual a história sobre a identidade negra foi contada?", conclui.
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