Ação social de empresas na pandemia deve ser habitual, dizem especialistas
Com as medidas de isolamento social e o agravamento da crise gerada pela pandemia de covid-19, a Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) passou a registrar e monitorar doações de empresas e campanhas para ajudar no combate à doença. No fim de março, o valor arrecadado foi de 450 milhões. Dois meses depois do primeiro levantamento, as doações batem R$ R$ 5,3 bilhões.
O número é expressivo para o Brasil, e também tem impacto comparado ao resto do mundo: um levantamento realizado pelo Candid, organização norte-americana que acompanha as doações nesta pandemia, coloca o país em quarto lugar entre os que mais têm contribuído, atrás de EUA, China e Índia.
Apesar da mobilização por parte de empresas e sociedade, o Brasil ocupa o 75º lugar no Índice global da CAF (Charities Aid Foundation), que mede o nível de solidariedade das nações. "Nós, que já fomos até a quinta, sexta economia do mundo, do ponto de vista do investimento social privado e filantropia, estamos na rabeira. Somos os últimos. Não há uma cultura de filantropia, de investimento social privado, no empresariado brasileiro. São poucas as empresas com esse histórico", diz Caio Magri, diretor-presidente do Instituto Ethos. Para ele, o que está acontecendo agora é uma sensibilização à forceps.
É uma reação de lideranças empresariais frente a uma situação de crise. Agora, para que isso se transforme em uma cultura, as empresas precisam entender a importância em distribuir melhor o lucro, apoiar as comunidades, especialmente as mais vulneráveis para que ali se espalhe uma melhor qualidade de vida
Caio Magri, diretor do Instituto Ethos
Setores em ação
Parte desses recursos já contabilizados vem do setor financeiro (34%), que conta com a participação de bancos como Itaú, Bradesco e Santander. O Itaú Unibanco figura com a maior contribuição: 1 bilhão para o fundo "Todos pela Saúde". Em 2019, o lucro líquido da instituição financeira foi de R$ 28,4 bilhões, alta de 10,2% em relação a 2018.
O segundo setor responsável pelo volume de doações é o de alimentos e bebidas (15%), com recursos de diversas empresas, entre elas JBS, Ambev, Nestlé, BRF, Coca Cola e Cacau Show. Em terceiro lugar, estão outros setores (12%), desde indústria automobilística a de cosméticos, incluindo doações de empresas como Caoa Chery, Suzano, Votorantim, Natura, Uber e Grupo UOL/PAG Seguro.
Cássio Aoqui, sócio-fundador da consultoria ponteAponte e professor de empreendedorismo e inovação social da Fia (Fundação Instituto de Administração), explica que há fundos criados, por exemplo, para suprir lacunas do Estado.
Magri crê em um modelo de diálogo com o governo. "A gente tem, historicamente, algumas instituições que adquiriram um papel quase igual ao do estado, mas isso é uma distorção. É paradoxal que a sociedade espere das empresas o que é responsabilidade dos governos, e é estranho que as empresas queiram substitui-los. Não dá para comparar em valores, dinâmicas e responsabilidades. Deve ser uma parceria para que as empresas ajudem na construção de uma sociedade mais justa e sustentável."
É o comprometimento da empresa em ações que colaborem com um mundo mais sustentável. Respeito às leis ambientes e trabalhistas se enquadram aí. O conceito foi usado em 1998 pela organização Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, para se referir ao comprometimento permanente dos empresários com um comportamento ético com as pessoas.
É a criação de fundos por parte de empresas, em um repasse de recursos privados que ocorre forma planejada, monitorada e regular para projetos sociais, ambientais, culturais e científicos de interesse público.
É mais próxima da ideia de solidariedade e amor ao próximo. No âmbito empresarial, são as doações destinadas a populações vulneráveis, ou para projetos sociais que atuem junto delas.
Comprometimento para mudar
Para o diretor do Ethos, as empresas deveriam focar em políticas de investimento mais abrangentes. "Na cultura se investe porque há incentivo: a antiga lei Rouanet e leis estaduais e municipais. E na educação porque, de fato, há uma pressão da sociedade por melhorias", explica. "Mas em um momento como esse, o investimento na saúde é fundamental. E isso não é álcool em gel, máscaras. Isso é crise. Investir em saúde significa investir em saneamento básico, projetos habitacionais inovadores, melhorar a qualidade da água, proteger as nascentes. Não sei se a pandemia vai abrir os olhos de empresários e empresárias para que sejam mais solidários e comprometidos."
A dúvida sobre práticas futuras de grandes corporações vem atrelada a outra preocupação: a dificuldade econômica que o país já enfrenta. "Muitos investimentos estão atrelados a performances das empresas. E, tirando alguns de setores específicos, a maioria vai decrescer", coloca Cássio.
Para Patrícia Lobaccaro, CEO da BrazilFoundation, é preciso pensar em novas formas de apoio, já que a pandemia demanda ainda mais o trabalho de organizações comprometidas com a redução das desigualdades.
Um caminho, segundo os especialistas, seria um marco jurídico que facilite doações e incentive investimentos. Nos EUA, um dos líderes mundiais de filantropia, doações podem ter abatimentos de até 50% no valor do imposto de renda para pessoas físicas. Bilionários como Bill Gates, fundador da Microsoft, encabeçam campanhas incentivando empresários a destinar parte de suas fortunas a projetos sociais e fundações.
Um dos entraves no Brasil é a forma como é feita a tributação. O Imposto de Transmissão sobre Causa Mortis e Doação (ITCMD) é definido por cada estado e pode chegar a 8%. Cássio Aoqui, sócio-fundador da ponteAponte, explica: "Se a sede de uma empresa fica em um estado e a doação vai para outro, dependendo do caso, também muda quem tem de pagar esse imposto: quem recebe ou quem destina?"
Magri alerta, mais uma vez, para a questão cultural que precisa acompanhar tanto a filantropia quanto a criação de fundos. "A gente tem incentivos fiscais para produção, importação e exportação, mas não tem para o processo de investimento social privado. Por outro lado, não é só isso, porque a gente tem uma cultura de casa grande e senzala da maioria das empresas com o povo, não só com os trabalhadores."
Para Aoqui, que faz um trabalho ligando empresas a organizações da sociedade civil e coletivos de periferias para que o investimento aconteça de forma mais qualificada, o engajamento de grandes instituições no momento é motivador, mas é preciso ser pragmático.
Se não houver uma pressão do consumidor, da mídia, essas doações, esses investimentos não vão se manter. A pressão tem que ser de todos os lados. A academia tem que formar pessoas mais críticas, a educação precisa melhorar no país com um todo, os consumidores precisam questionar mais. É preciso ter um ambiente regulatório que incentive e que, de alguma forma, facilite processos
Cássio Aoqui, sócio-fundador da ponteAponte
O empreendedor acredita que um ponto importante é analisar a coerência histórica de cada setor e instituição. Responsabilidade empresarial, filantropia e investimento social privado são coisas distintas, mas enxergá-las combinadas pode dar a dimensão do comprometimento das instituições. "Não adianta nada uma empresa fazer um trabalho social maravilhoso em uma favela se a natureza do seu negócio, por exemplo, está causando o trabalho escravizado na cadeia de fornecedor. Isso não é responsabilidade social. Por isso é preciso trabalhar a transparência. Para que o interesse em uma transformação seja, de fato, genuíno", conclui.
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