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Bicicleta pode ser aliada na pandemia se houver atenção a desigualdades

Terezinha Barreto, ciclista do coletivo Malungada e entregadora  - Arquivo Pessoal
Terezinha Barreto, ciclista do coletivo Malungada e entregadora Imagem: Arquivo Pessoal

Juliana Vaz

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

03/06/2020 14h39

Enquanto uma das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) é evitar aglomerações, São Paulo tem cerca de 22 milhões de pessoas vivendo na região metropolitana e grande parte passa horas no transporte público — pesquisa da Rede Nossa São Paulo de 2019 aponta uma média de 2 horas e 43 minutos. Prestes a relaxar a quarentena, a capital paulista se depara com um desafio grande: pensar a sua mobilidade.

Diante de restrições de circulação, a bicicleta — cujo Dia Mundial é celebrado nesta quarta (3) — vem sendo estudada como uma aliada em várias partes do mundo. Mas, para que isso seja possível, é preciso considerar como funciona cada espaço.

Nesse momento, um grupo grande de ciclistas nas ruas da capital paulista é composto por entregadores de delivery, cujas condições de trabalho muitas vezes são precárias e incluem pedalar longas distâncias, muitas horas e em regiões que não favorecem.

"A gente está sendo pilar da economia, a meu ver. Estou diminuindo as horas trabalhadas, mas por muitos dias saia de casa às 8h e voltava às 20h, 21h. Era o dia todo fora, pedalando", diz Terezinha Barreto, 33, que trabalha há um ano como entregadora e faz parte do coletivo de ciclistas negros Malungada. O relato dela não é exceção — como mostra a colunista de Ecoa Milo Araújo, que reuniu uma série de declarações de entregadores que estão pedalando no momento, e o documentário "Entregadores e a Pandemia", do grupo Bicicleteiros.

Ela trabalha com chamados realizados por contatos e indicações, mas a maioria dos entregadores usa bikes compartilhadas e presta serviço para aplicativos de delivery. "O volume de chamados aumentou, e não são só lojas e delivery de alimentos. As pessoas físicas estão pedindo para os ciclistas courriers, pensando na classe média, para ir ao mercado, comprar remédios", conta.

Terezinha é parte de um perfil traçado em 2019 pela Aliança Bike (Associação Brasileira do Setor de Bicicletas). A entidade fez uma pesquisa sobre quem são os entregadores de aplicativos no país que usam bicicleta. Segundo o estudo, a maioria é jovem — metade tem até 22 anos — e negra (71%). Eles trabalham em média 9 horas e 24 minutos por dia; a maior parte, 7 dias por semana (57%).

Dentre os problemas que observam está a falta de um lugar de apoio para banheiro, água, tomadas para recarregar telefone e oficina para realizar consertos. Dos problemas da cidade, a falta de segurança no trânsito e de infraestrutura adequada são os mais urgentes.

"A bicicleta sempre foi uma perna importante para a micrologística, o que agora é reforçado", diz Aline Cavalcante, diretora de Participação Pública da ONG Ciclocidade.

Pensar a cidade com mais bicicletas é uma solução de mobilidade sustentável defendida por muitos, mas é preciso atentar ao que aponta quem mais está nas ruas pedalando no momento.

Solução na pandemia, solução depois dela

Em relação a segurança no trânsito e infraestrutura, problemas levantados por entregadores que envolvem o planejamento urbano — e não questões de trabalho —, a diretora da Ciclocidade conta que na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT) foi criado o plano de mobilidade para todos os modais. E na gestão atual de Bruno Covas (PSDB) já foram apresentados dois planos cicloviários. "Temos um plano apresentado há três anos, orçamento aprovado, mas nada sai do papel", lamenta.

Para Cavalcante, reduzir a circulação de carros e criar ciclofaixas provisórias, limitada por materiais flexíveis, como em Bogotá, são opções que podem ser aplicadas já em São Paulo, por exemplo.

Hoje a frota de ônibus municipais em São Paulo é de 65,5%; de trens do Metrô, 70%; e da CPTM, 90%, de acordo com a Secretaria dos Transportes Metropolitanos (STM). Com isso, quem precisa se deslocar para trabalhar, comprar mantimentos ou remédios enfrenta aumento do tempo de espera por ônibus e trens, além de ruas mais vazias.

Estamos falando de distanciamento social, então estamos falando naturalmente de espaço. Hoje, quem mais ocupa espaço público na cidade são os carros: 80% do viário público é dedicado ao automóvel. O que chama a atenção é que apenas um terço da população de São Paulo usa o carro. É um descompasso irracional do uso do espaço

Aline Cavalcante, diretora de Participação Pública da ONG Ciclocidade

A OMS reitera priorizar a bicicleta durante a pandemia porque ela "permite distanciamento social, enquanto proporciona o mínimo de atividade física necessária por dia".

Um levantamento realizado pela Tembici, empresa líder de micromobilidade na América Latina, identificou que nas cidades de atuação da empresa, como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e Salvador foi constatado que 54% dos usuários utilizam a bike para ir e voltar do trabalho, ao menos duas vezes por semana, e mais de 45% hoje optam pela bicicleta como meio de transporte eficaz na prevenção ao novo coronavírus.

Em Pernambuco, a empresa firmou uma parceria com a Prefeitura de Olinda em que as bikes do projeto podem ser usadas gratuitamente pelos funcionários públicos dos serviços essenciais até o fim da quarentena.

A Organização Panamericana de Saúde (Opas) da OMS identificou mais de 100 intervenções similares em todo o mundo.

A Europa já reconheceu a importância da bike nos trajetos urbanos: a França, que ocupava o quarto lugar em número de mortes por covid-19 e foi ultrapassada pelo Brasil, no último dia 30, no ranking mundial, tem incentivado a população a usar a bicicleta, principalmente no período de desconfinamento. O metrô parisiense tem 16 diferentes linhas e 300 estações que se estendem ao longo de mais de 200 km percorridos por trens sem janelas — apenas vitrôs basculantes para ventilação.

O governo então criou um fundo de 28 milhões de euros, que será destinado a ajuda individual de 50 euros por pessoa para financiar reparos mecânicos nas bicicletas. Em Paris, a prefeitura está distribuindo vouchers para a compra de bikes.

Mas nem precisamos atravessar o oceano para ter exemplos de quem está encarando isso de frente. "Lima, Quito, Cidade do México, Buenos Aires têm aplicado urbanismo tático, usando materiais leves para abrir espaço para pedestres e ciclistas", conta Cavalcante. Na capital colombiana, há hoje 80 km de ciclovias temporárias.

Com atenção ao modo diverso como as pessoas experimentam a cidade, a bike pode ajudar a redesenhar a mobilidade urbana, creem as entrevistadas. "A simbologia tem um papel importante, e a bicicleta é um desses símbolos que falam de movimento", diz a diretora da Ciclocidade.