"Não estamos no mesmo barco": periferias de SP adaptam ações contra Covid
A frase "fique em casa" não foi pensada para os moradores de periferias que precisam sair para trabalhar e são os principais responsáveis pelo funcionamento de diversos serviços essenciais da cidade. Com o maior número de mortes do país, a cidade de São Paulo tem 185 óbitos apenas no distrito da Brasilândia, na zona norte. A zona leste tem 107 mortes só em São Mateus, e na zona oeste há 41 óbitos no distrito da Raposo Tavares. É o que revelam os dados de até dia 20 de maio divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde.
Em meio ao cenário de avanço da pandemia do novo coronavírus em periferias, os noticiários seguem mostrando que nas quebradas a vida segue com a realização de bailes, aglomeração de jovens em praças e bares abertos. Mas quem deveria fazer um trabalho de conscientização dessas pessoas, levando em consideração o seu modo de vida?
Sem esperar ou depender de apoio do poder público ou de uma mudança de narrativa na comunicação, iniciativas periféricas estão realizando ações informativas em plataformas online e offline para conscientizar os moradores sobre as formas de prevenção ao contágio da covid-19.
Essas iniciativas, contam seus idealizadores, creem na importância de criar um canal de diálogo com os moradores, utilizando a vivência e o olhar de quem faz parte do cotidiano da quebrada como aliados para entender as demandas locais. A ideia é transformar esse repertório em uma estratégia para informar, em vez de criminalizar os moradores -- principalmente a juventude, que muitas vezes enxerga a rua como caminho de fuga de conflitos dentro de casa.
Em Parelheiros, podcast 'desuniversaliza' impactos da pandemia
Dados da Secretaria Municipal de Saúde mostram os 10 distritos com maior número de mortes em São Paulo, sendo que seis deles se encontram na região sul: Grajaú (149 óbitos), Capão Redondo (141), Jardim São Luís (140), Jardim ngela (130), Cidade Ademar (128), e Sacomã (120). Juntos, o distrito de Parelheiros e Marsilac, também na região sul, somam 72 óbitos confirmados e suspeitos. Os dados são referentes ao período de 11 de março a 20 de maio.
Como uma alternativa para a falta de ações de comunicação voltadas aos moradores do território, o coletivo Arque Perifa, formado por cinco jovens que atuam no distrito de Parelheiros e Marsilac, criou o podcast "Lugar de Quarentena". A proposta é que as pessoas entendam os seus lugares, seus contextos, ou mesmo escutem outros lugares e contextos, na discussão sobre as vivências no período da pandemia do novo coronavírus. O programa também foge da ideia de que o impacto do vírus se resume apenas ao universo da saúde.
Para Laura da Silva, 19, produtora cultural e uma das integrantes do Arque Perifa, a pandemia foi apenas uma lupa para outras questões e adversidades do cotidiano das periferias, e o podcast possibilita divulgar novos olhares. "A gente chama um morador para dar um relato, ou falar sobre a sua vivência de acordo com o recorte que damos para cada episódio. Também sempre temos um ativista ou especialista na causa. A gente valoriza pessoas da região, mas quando não tem essa possibilidade chama pessoas que estão pensando sobre o tema em outras periferias", conta.
A gravação do podcast é feita por uma plataforma de videoconferência e distribuída via canais de áudio e vídeo, além de listas de WhatsApp que recebem uma versão reduzida do material, a fim de alcançar pessoas que não têm o hábito de ouvir podcast.
Laura reforça que a ideia é que o conteúdo não fique acessível só aos moradores que utilizam plataformas digitais. "A gente quer ampliar o Lugar de Quarenta para carro de som e panfletagem, porque percebe que na nossa região a internet é muito precária", diz ela.
A jovem conta que um dos objetivos do podcast é 'desuniversalizar' os impactos da pandemia.
Não está todo mundo no mesmo barco. Pessoas passam por situações, questões, em níveis diferentes
Laura da Silva, integrante do Arque Perifa
Ela também acrescenta: "Quando a gente conversa sobre o cotidiano da pessoa, primeiro ela tem uma identificação: 'Eu passo por isso minha vida toda'. Ou: 'Nossa, meu parente passou por isso', 'realmente, nunca tinha pensado que era um problema'. A partir dessa reflexão, a gente começa a engajar".
Laura conta que a administração pública da subprefeitura usa as redes sociais mais como prestação de contas do que espaço de diálogo, pensando nas demandas da população. "É só uma replicação de uma recomendação geral, e não enfocando as características e necessidades daqui". Ela cita a contribuição do trabalho de jornalistas periféricos que atuam no distrito de Grajaú, divisa com Parelheiros, como o coletivo Periferia em Movimento.
Na Brasilândia, rede age em parceria com agentes de saúde
Na zona norte de São Paulo, iniciativas também têm buscado cobrir lacunas. Uma delas é a Rede Brasilândia Solidária. Com mais de 200 voluntários e formada por lideranças locais, a rede articula agentes de saúde, de assistência social, culturais, de educação, entre outros.
Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde, os óbitos por covid-19 confirmados e suspeitos somam 185 ao todo na região, registrados entre 11 de março e 20 de maio, mostrando um aumento de 176% em comparação com os números de 21 de abril, que registrava 67 mortes.
A Rede Brasilândia Solidária está organizada em nove núcleos de ação: Saúde, Educação, Comunicação, Juventude, Cultura, Assistência Social, Trabalho e Renda, Captação de Recursos e Pessoa com deficiência. Cada um, dentro de sua especificidade, discute o melhor jeito de fazer a comunicação sobre a pandemia no território.
"Temos uma ação que ocorre cotidianamente: carros de som e um trio elétrico circulando para divulgar, por meio de vinheta produzida pela rede, a necessidade do isolamento possível e a importância de se usar a máscara ao sair de casa e ter contato com pessoas", conta Jabes Campos, advogado e dirigente do Instituto Saci - Saberes Culturas e Integração, organização que desenvolve projetos focados em jovens e mulheres em situação de vulnerabilidade social. "Planejamos o trajeto e definimos ruas prioritárias para atingir a população. Nos locais em que o carro de som não chega, os agentes usam megafones", detalha.
Em relação à juventude, a Rede está buscando um melhor meio de comunicação — o dirigente do Instituto Saci diz que ainda vê grupos em pequenas aglomerações. "A região já tem carências históricas, o poder público não tem uma atuação robusta, só os serviços de saúde e de educação são visíveis. Fora isso os outros serviços são esporádicos", lamenta.
A Rede Brasilândia Solidária [saiba mais sobre ações na Brasilândia] é formada por associações, coletivos e agentes que atuam no distrito, e juntos assinam uma carta com reivindicações. Entre elas está um pedido para a instalação de espaços públicos para isolamento. Enquanto isso não acontece, eles seguem espalhando mais de 150 faixas de alerta e prevenção nas ruas.
No João XXIII, cartilha traduz informações sobre a Covid-19
Pensando em uma comunicação direta, um grupo de jovens do João XXIII, um dos bairros do distrito Raposo Tavares, organizou ações anti-Covid. Eles se conheceram no cursinho pré-vestibular Cláudia Silva Ferreira, iniciativa de educação popular para moradores da região.
As ações começaram com a distribuição de máscaras e pedras de sabão, junto a uma cartilha adaptando informações sobre cuidados diante do novo coronavírus para uma linguagem mais informal, pensada para o morador do território. Além desta função, o material aborda a importância da auto-organização e mostra opções de como se organizar de forma comunitária no momento.
Pedro Henrique Fernandes, 23, morador do João XXIII e estudante do cursinho afirma que comunicar de morador para morador é a forma mais potente, e que as pessoas dão mais credibilidade porque sabem quem você é. "Fizemos uma cartilha porque percebemos que as informações oficiais não são muito acessíveis, é algo mais institucional e formal. Então fizemos uma direto para o bairro. A gente vê que as pessoas acreditam mais quando você é do espaço."
Fernandes diz que outro ponto importante da ação foi a conversa com jovens que, muitas vezes, estão seguindo suas vidas da mesma forma. "É uma doença que, vinha sendo colocado, mata só idoso. Aí muitos jovens têm a ideia de que podem seguir normalmente. A cartilha também coloca a 'responsa' nos jovens, falando de que maneira estão levando o vírus para os espaços. Independente do estado, a gente precisa se organizar para continuar sobrevivendo."
O grupo estuda agora transformar a experiência em uma série de vídeos, feito por moradores, abordando coronavírus e questões sociais. "No momento em que a gente conversa, existe um choque, mas a gente percebe que, depois da ação, há um clima mais cuidadoso", diz Fernandes.
São Mateus: 'Aqui é um bairro de luta, iremos vencer mais essa'
A ação "Graffiti contra a fome" faz parte da campanha da rede de coletivos culturais São Mateus em Movimento, que atua na zona leste de São Paulo. A ação reúne artistas da região, como Rafael Bone, Cris Rodrigues, Val OPNI e Todd OPNI, a fim de homenagear quem está na linha de frente do combate ao novo coronavírus.
"É importante aproximar o tema, seja para quem não assiste TV ou ainda acha que é um problema distante. Estamos usando panfletos impressos e colocando nas cestas básicas", diz Rafaela Maiara, 24, moradora de São Mateus e integrante da rede de coletivos.
Ela conta que as iniciativas também são um lembrete de resistência e luta no território, e acredita que a campanha servirá para mostrar aos moradores a importância da união comunitária.
É um convite para que pensem nisso, no cuidado, em como tratamos o nosso corpo e o mundo em que vivemos. Também é um lembrete de que nós estamos aqui, se ajudando e se cuidando, que São Mateus é um bairro de luta e que iremos vencer mais essa batalha
Rafaela Maiara, moradora de São Mateus
A articuladora crê ser do estado a responsabilidade por vermos, nas periferias de São Paulo, um grande número de pessoas na rua, sem conseguir fazer a quarentena. "A maioria é jovem e as pessoas não estão na rua por querer, mas por necessidade. É preciso garantir as condições básicas para que fiquem em casa", diz ela.
O Desenrola E Não Me Enrola é um coletivo de comunicação e produção jornalística que atua a partir das periferias de São Paulo, investigando fatos invisíveis que geram grandes impactos sociais na vida dos moradores e moradoras dos territórios periféricos.
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