União da pesquisa e financiamento viabilizaram teste de vacina no Brasil
Dois mil voluntários nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro começam a ser recrutados até o final deste mês para os testes com a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford contra a covid-19. A etapa de trabalhos no Brasil, primeiro país fora do Reino Unido a iniciar pela instituição a testagem em massa, é coordenada pelo Centro de Referência para Imunobiológicos Especiais (CRIE) da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A reportagem de Ecoa conversou com professores e pesquisadores brasileiros envolvidos na parceria com a instituição britânica para entender o que foi crucial na negociação. A meta é testar cerca de 10 mil pessoas em todo o mundo.
No caso do Brasil, a boa reputação internacional em questões de imunização, sobretudo pelo SUS (Sistema Único de Saúde), e o momento epidemiológico do coronavírus no país — atualmente, epicentro mundial da pandemia — foram fatores fundamentais para a escolha.
Quem explica é a coordenadora do centro onde serão realizados os testes, a epidemiologista, pesquisadora e professora da Escola Paulista de Medicina (vinculada à Unifesp) Lily Yin Weckx. Ela contou ter sido contatada diretamente pela professora Sue Ann Costa Clemens, que liderou a articulação para a vinda dos testes ao Brasil, como chefe do Instituto de Saúde Global da Universidade de Siena, também pesquisadora do Crie e consultora sênior da Fundação Bill & Melinda Gates para o desenvolvimento de vacinas.
"A fase três da produção da vacina, com testes clínicos, demanda um número muito maior de participantes. A situação epidemiológica no Brasil, de casos aumentando e curva ascendente -- ou seja, com uma circulação do vírus muito bem estabelecia --, torna o país muito adequado para se testar a eficácia nesse tipo de estudo", afirma a pesquisadora. "Além disso, o Brasil é reconhecido globalmente por sua excelência na área de vacinação, seja por meio de seu programa nacional de imunizações ou por seus centros de pesquisa", completou.
A pesquisadora não precisou, mas garantiu que o número de voluntários que demonstraram interesse em participar, antes mesmo do recrutamento, "supera bastante" as 2.000 vagas.
Participarão dos testes voluntários com idade entre 18 e 55 anos, ainda não infectados com o novo coronavírus, e prioritariamente profissionais mais expostos aos pacientes com covid — como médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, técnicos de radiologia, motoristas de ambulância —, os quais serão, antes, submetidos a uma avaliação clínica.
Voluntários e vacina meningocócica
A exemplo de outros testes para desenvolvimento de vacinas, parte dos voluntários receberá a vacina em teste, e outra parte receberá outro composto — de modo que os dois grupos serão acompanhados pelos profissionais envolvidos na pesquisa por um período de quase um ano. No caso dos testes conduzidos pelo Crie, no entanto, quem não for vacinado para a covid receberá não um placebo, mas outra vacina: a ACWY, ou meningocócica. "É uma grande vantagem para o participante, já que a ACWY não é disponível rotineiramente", definiu a pesquisadora.
O contrato com a Universidade de Oxford foi assinado pela FapUnifesp (Fundação de Apoio à Universidade Federal de São Paulo), que buscou, na própria Unifesp, interessados em integrar o projeto. Embora a instituição britânica também tenha contribuído financeiramente, a maior parte dos recursos para a etapa de análise da eficácia da vacina no Brasil foi custeada pela Fundação Lemann, do bilionário brasileiro Jorge Paulo Lemann. Nenhuma cifra, no entanto, foi revelada.
Entidade de direito privado, sem fins lucrativos, a FapUnifesp tem 15 anos de fundação e é o órgão que assina os contratos para o desenvolvimento de pesquisas, como a atual, com Oxford. Com CNPJ próprio, cabe a ela gerenciar os recursos recebidos de modo a garantir infraestrutura, logística e suporte administrativo aos pesquisadores e demais profissionais envolvidos no desenvolvimento de projetos acadêmicos em ensino, pesquisa e extensão da universidade.
Fundação ligada à Unifesp gerencia
O presidente da fundação, Jair Ribeiro Chagas, professor aposentado do departamento de biofísica da universidade, explica que a proposta de atuação de órgãos como a FapUnifesp "é aumentar a flexibilidade e a eficiência no processo de se obterem projetos e recursos para as universidades", já que, por contarem com natureza privada, ficam menos sujeitos à burocracia estatal. Mesmo assim, ele ressalva, é obrigatório obedecer regras internas de compliance e ética necessárias para atender a instituição pública.
Chagas destacou ainda que o controle e a avaliação sobre as fundações são feitos pelo Ministério Público Estadual; além disso, são obrigatórios prestação contas e balanço anual, sob o crivo de uma auditoria externa, e a aprovação de ambos por uma Procuradoria específica.
No caso da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford, o dinheiro repassado e também a doação feita à FapUnifesp serão utilizados para reforma e adequação de espaço do Crie - localizado na Vila Clementino (zona sul de São Paulo) — aos trabalhos de testagem, bem como à contratação de um grupo especializado de profissionais que atuarão ao longo dos meses nos trabalhos sobre a eficácia da vacina e também na prestação de contas.
"Existe um grupo dentro da Escola Paulista de Medicina, liderado pela professora Lily, que tradicionalmente desenvolve diversos estudos para a indústria farmacêutica quando ela vai introduzir novos remédios ou vacinas - claro que tendo de seguir regras e protocolos para isso", ponderou.
'Você quer tomar Novalgina ou ter dor?'
O presidente da fundação refuta uma crítica até certo ponto comum de que, em projetos de pesquisa financiados por agentes externos, e não por governos, a estrutura pública das universidades sirva de "cobaia" ao setor privado - seja este representado por uma universidade privada estrangeira ou uma fabricante de medicamentos.
"No caso de uma vacina como esta, contra a covid, onde que haveria recursos — da ordem de muitos bilhões de dólares — para se implementar um projeto que envolve milhares no mundo todo, que precisa ter uma alta segurança e o máximo de garantia de que não vai fazer mal, e com produção em um tempo muito curto, que não por essas parcerias? Não existe", afirmou, enfático.
"As empresas farmacêuticas podem até ganhar algo, no futuro [com o lançamento de remédios e vacinas], mas elas acabam viabilizando isso também. É uma escolha: você quer tomar Novalgina ou passar dor? Do que não se pode prescindir é de regras sérias para a aprovação de medicamentos, com negociações bem feitas a fim de que o preço não seja abusivo, e de formar pessoas para que possam definir políticas públicas, saber negociar com entidades internacionais e trazer essa tecnologia para ser implementada em nosso país", concluiu.
A estimativa de Chagas é que, embora os voluntários sejam acompanhados por cerca de um ano, a testagem no Brasil já tenha resultados conclusivos pela liberação da vacina em até quatro meses.
'Nenhum centavo de um projeto para outro'
Ao menos duas legislações hoje vigentes favorecem que empresas que se associem a uma fundação, por meio de incentivo à pesquisa, obtenham vantagens financeiras: a 11.196/05, chamada "Lei do Bem", que possibilitou a concessão de incentivos fiscais a pessoas jurídicas que realizam pesquisa e desenvolvimento de inovação tecnológica, e a 13.243/16, que trata dos estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação.
"Além do mais, há um compromisso no sentido de que a fundação não pode usar nenhum centavo de um projeto para pagar outro", observou o diretor administrativo da FapUnifesp, Luiz Jurandir Simões de Araújo, professor de Atuária no campus Osasco da instituição.
Vantagens para o Brasil?
A escolha do Brasil para participar dos testes da vacina britânica em humanos, entretanto, não garante qualquer prioridade do país para receber a vacina, uma vez comprovada sua eficácia. Mesmo assim, os professores acreditam que tanto a pesquisa quanto os pacientes brasileiros podem ser beneficiados.
"Somos contratados para fazer a avaliação técnica da vacina, mas é evidente que, conhecendo os pesquisadores brasileiros, os médicos, a Fundação Lemann, não tenho dúvidas de que seremos atendidos entre os primeiros lotes da vacina - ainda mais que a Universidade de Oxford tem demonstrado uma preocupação ética muito grande sobre questões como essa", avaliou o presidente da fundação.
A coordenadora do centro em que os testes serão realizados, por sua vez, aponta que, mesmo sem uma prioridade imediata explicitada, o desenvolvimento de uma vacina com etapa de análise no Brasil pode favorecer o país não apenas na aquisição do produto, como na transferência de tecnologia.
"Essas são negociações à parte e que devem ocorrer. Quando se introduz uma nova vacina, se começa a negociar também a transferência de tecnologia entre os envolvidos. Isso foi visto, por exemplo, com o programa de vacinação contra a gripe -houve transferência de tecnologia desde o início, e, hoje, nossas vacinas antigripais são produzidas por aqui. Para essa nova vacina, é muito possível que isso ocorra", complementou Lily.
Além do mais, observou, pesquisadores brasileiros estão participando de um time internacional que atuará na elaboração dos protocolos e condução dos ensaios — uma área tão especializada quanto rigorosa, mencionou. "Esse é um aprendizado enorme; alguém que se forma nesse grupo, se vai depois para a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] ou o [Instituto] Butantan, por exemplo, vai com outro conhecimento".
Crise política, mas 'pesquisa unida'
A médica está na Unifesp desde 1968. Nesse período, testemunhou mais de duas décadas de ditadura militar, um processo de redemocratização — com governos democraticamente eleitos e de naturezas ideológicas distintas. Neste 2020, vê também uma pandemia que, no caso do Brasil, carrega como ingrediente extra também uma forte crise política.
"Independentemente do que está acontecendo, o que sinto é que a pesquisa científica está unida — como se todas as instâncias dela estivessem de fato torcendo por algo comum, colaborando, se entusiasmando para a coisa andar bem. É como se todo mundo quisesse mesmo mudar o status atual — e, diante da vacina, o entusiasmo é geral", finaliza a pesquisadora.
O projeto vacina de Oxford é um dos mais de cem em desenvolvimento ao redor do mundo no momento. Nesta quinta (11), o governador de São Paulo João Doria (PSDB) detalhou outra iniciativa: um acordo entre o Instituto Butantan e o laboratório chinês Sinovac Biotech para a produção de uma vacina para a covid-19 que prevê teste em nove mil voluntários brasileiros.
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