Pandemia mudou o trabalho e precisamos re-encantá-lo, afirma psicanalista
Uns perderam o seu. Outros foram trabalhar em casa. E muitos viram seus expedientes ou suas idas ao emprego se transformarem em uma espécie de campo minado. A pandemia mudou nossa percepção do trabalho. Reavaliar o que fazemos virou uma rotina para quem está trabalhando. Justamente refletir sobre o trabalho e seu impacto na mente do trabalhador é o assunto da psicodinâmica do trabalho, área de estudo desenvolvida na França na década de 1980 que investiga os efeitos emocionais, os sofrimentos e as satisfações decorrentes da organização laboral.
"O trabalho é o maior laboratório de desenvolvimento da cultura. É o lugar de discutir, desenvolver. Por isso, precisamos re-encantar o trabalho nesse momento", afirma Laerte Sznelwar, psicanalista especialista na área e professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
Ele conversou com Ecoa sobre o trabalho em tempos de Covid-19 e o cenário que se começa a desenhar para o futuro pós-pandemia.
O que a pandemia mudou no universo do trabalho?
A pandemia exacerbou muito as diferenças. O que já era problemático ficou ainda mais. O medo, por exemplo, está escancarado para quem trabalha na linha de frente, mas também está em quem está isolado em casa. Todos estão lidando com ele. Na psicanálise, tudo é ambíguo. Trabalhar à distância cria um tipo de proteção, mas, por outro lado, a pessoa perde o senso de coletivo, perde espaços de troca com os colegas e fica insegura.
E as relações tendem a ficar mais remotas após a pandemia, e aumentar a diferença de quem tem e quem não tem acesso às tecnologias. O uso da tecnologia tem muito a favor, mas também contra: aumenta o controle. E isso pode ser muito perigoso. Pode ser um caminho para totalitarismos.
Os entregadores ganharam protagonismo com o isolamento social, até fazendo protesto sobre suas condições de trabalho. Como vê essa situação?
Olha que antes eles só eram notados quando sofriam um acidente. Os trabalhadores de tele-entrega são os máximos exemplos da precariedade do trabalho, com contratantes que não se assumem como contratantes. Pois bem, eles saíram da esfera do invisível, ocuparam o espaço público, e, de repente, viraram a principal via de suprimento para boa parte da população.
Eles viviam entre o desprezo e a invisibilidade diante da sociedade, mas agora têm o desafio da emancipação da verdadeira profissão, de exigirem direitos e de serem estimados e valorizados. Para isso que se trabalha, não só pelo dinheiro.
Os trabalhadores da saúde também ganharam reconhecimento, sendo aplaudidos na rua. Também pode ser uma situação circunstancial e tudo voltar ao que era antes?
Quem trabalha na saúde foi alçado à condição de herói de uma hora para a outra. Acontece que desde sempre eles convivem com o perigo e a morte, não começou agora. As pessoas também devem perceber que o trabalho do cuidado significa compaixão. Isso um robô não faz. São profissões cada vez mais importantes.
Médicos e enfermeiros foram aplaudidos, mas outros trabalhadores continuaram invisíveis, como os motoristas de ambulância, os maqueiros, os seguranças de hospital. Eles também fazem parte da equipe de cuidado. É preciso mostrar que eles não estão lidando com máquinas, equipamentos, instalações. Eles estão lidando com gente. Por isso, é preciso ver como o trabalho em seu conjunto. Porque essa área, como muitas outras, é uma atividade coletiva, coordenada e útil. Isso deve ser reconhecido. E Isso muda muito a sociedade.
Como fica o papel do trabalho no tal do "novo normal"?
Um psicanalista vai ficar sempre intrigado com a aparente normalidade, com o que parece banal. A psicodinâmica do trabalho, minha especialidade, é uma área que surgiu como proposta, não como denúncia. O problema da denúncia é que ela está sempre atrasada, porque a falha já aconteceu. No mundo do trabalho, é comum as pessoas pensarem "as coisas são assim mesmo". E aí elas vão adoecendo.
Durante a quarentena, por exemplo, as pessoas têm mais tempo de contato com a família, o que também é uma situação ambígua. Por um lado, pode ser bom, mas pode criar cenários doentios como aumento de tensões, discussões, agressões.
Como lidar com isso e ainda trabalhar remotamente ao mesmo tempo?
Tem que haver muito diálogo. Temos que reaprender a conviver, a ouvir as pessoas. Negociar e divergir reduz a ideia de opressão, em qualquer ambiente. Exige de mim e de todos.
Também precisamos democratizar o trabalho. Temos que reavaliar as relações, diminuir a ideia de dominação pela dominação. O trabalho é o maior laboratório de desenvolvimento da cultura. É o lugar de discutir, desenvolver. Por isso, precisamos re-encantar o trabalho. É preciso ver que não existe uma pessoa que não tenha a capacidade de aprender. Um trabalhador melhor é um cidadão melhor.
E passamos grande parte da vida trabalhando e pensando como faríamos para trabalhar menos.
O trabalho é o processo central da vida das pessoas, mas é pouco conhecido e muito menosprezado. A grande questão para quem trabalha é que não temos tempo para sentar, refletir, discutir sobre essa experiência. Temos que pensar como ele contribui para a sociedade, para a sustentabilidade. Ele faz sentido? É bem feito? As pessoas querem encontrar satisfação e aprovação, muito além da questão de subir na hierarquia, o que parece a única forma disponível no mercado. Valores pelos quais trabalho? O importante não é fazer mais, é fazer com mais utilidade, com mais valor.
O trabalho jamais é neutro. A experiência de trabalhar envolve sofrimento e prazer. Por um lado, é uma atividade constrangida porque é dominada por outros. Mas é também um promotor do enriquecimento, material e mental. O trabalho está muito ligado a relações humanas, identificação, confiança, permanência. Você cria, sofre, aprende, e esse esforço deve ser recompensado.
Qual é a sua opinião sobre o home office, que, antes da pandemia, era uma opção, e agora virou regra para quem trabalha em escritório?
É muito séria essa questão da gestão por e-mail. Quanto mais longe, maior a invisibilidade. Some a dimensão real do trabalho. Não se sabe nada sobre o trabalho da pessoa, só o resultado, só se bateu ou não a meta de produção. O sujeito tem corpo, tem limite. E ele só existe na relação com o outro. Com o trabalho remoto, isso se esvai mais ainda.
Por isso, são tão importantes os espaços de troca, a conversa no corredor, a rádio-peão. O trabalho precisa ter espaço para o formal e o informal. Os papos no cafezinho, na copa não são tempos mortos, improdutivos. Eles chegam a ser estratégicos para as empresas, com muitas informações, percepções, experiências passando por eles. Mas, como hoje tudo tem métrica, tudo tem gestão, esses espaços vão desaparecendo. No home office, mais ainda.
Outro exemplo de sofrimento no trabalho remoto são os professores. Como estimular a vontade de aprender nos alunos através de uma tela de computador? Claro que não é ficar repetindo os conteúdos. O professor tem agora que re-encantar a docência. Usar a pedagogia reversa e colocar os alunos e seus temas em cena pode ser um caminho.
O medo de ficar doente pode estar afetando muito a saúde mental do trabalhador?
Esse temor misturado com o estímulo à competitividade pode ser perigoso. Na década de 1990, nas grandes centrais telefônicas de atendimento, muita gente acabava afastada, com os colegas procurando colocar a pessoa de lado, desacreditando de suas doenças. Mas essas mesmas pessoas tinham medo de ficar doente, ficavam doentes, mas faziam de conta que não era com elas. Quando não se pode discutir uma situação, o ambiente vira patogênico.
A ideologia do silêncio é algo muito perigoso. O trabalho pode ficar insuportável, o que dispara mecanismos de defesa, que podem virar verdadeiras ideologias. É o caminho fácil do cinismo defensivo, ridicularizando e desprezando o sofrimento do outro. O cinismo reduz a capacidade de pensar. E a ideologia reduz a capacidade de olhar. Por isso, é preciso agregar valor na busca do trabalho bem feito. E fazer isso coletivamente. O trabalho recompensador deve ser algo para todos.
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