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Empresas estão dispostas ao custo de uma liderança ética?

O psicanalista Christian Dunker, que participou de debate da ONU sobre lideranças éticas - Divulgação
O psicanalista Christian Dunker, que participou de debate da ONU sobre lideranças éticas Imagem: Divulgação

Carina Martins

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

24/06/2020 15h50

Criar lideranças éticas dentro das empresas é um processo gradual e que, desde o início, enfrenta o desafio de demandar uma característica já de nível intermediário de eticidade: compromisso. "Se a gente quer enfrentar o bicho feio olhando de frente pra ele, a gente vai ter que enfrentar os processos de gestão", diz o psicanalista e professor da USP Christian Dunker. A fala faz parte do webinar "O valor da integridade e liderança ética em momentos de crise", do Pacto Global da ONU, transmitido por Ecoa nesta quarta (24). Dunker debateu essa construção ao lado dos advogados Marcelo Coimbra, sócio da FCR Law e especialista em compliance, e Roberto Medeiros, superintendente de compliance da Neoenergia.

"Iniciamos a pandemia já no déficit, pela ausência de lideranças morais na sociedade como um todo, e as empresas nada mais são que grupos sociais dentro dessa sociedade", diz Coimbra. Isso significa que, embora a crise aponte um holofote para a questão, e seja piorada por ela, essas lideranças necessariamente são, ou deveriam ser, mais amplas. "Estamos num momento que vinha de uma crise da ética e que desembocou numa ética da crise. Nada mais oportuno do que perguntar nesse momento onde estão nossas lideranças", diz Dunker.

Nessa construção, existem três níveis crescentes de abordagem da corrupção: culpa, responsabilidade e implicação. O primeiro nível é o mais básico, onde tudo se regula com obediência ou transgressão. Ou seja, é aquele em que as regras são seguidas apenas por medo da punição. "Isso cria um emaranhado de produtores de novas leis, uma hipertrofia da regulação", diz Dunker. "Não está dando certo. Está criando monstros administrativos e não transforma as pessoas". A mudança começa quando você - ou sua empresa - sai do nível da culpa e entra no da responsabilidade, onde há um compromisso e a pessoa responde por seus atos.

É mais fácil botar na cadeia do que chamar um sujeito (transgressor) às falas. As empresas temem muito isso. Mas é quando acontece o desenvolvimento da moralidade

Christian Dunker, psicanalista

A terceira fase é a da implicação. Ela vai além da responsabilidade e é guiada pela resposta à pergunta: qual é o meu dever? Criar um novo futuro torna-se uma vontade e uma escolha. "A moral funciona à base da culpa, a ética funciona à base de desejo", diz Dunker.

Responsabilidade na prática

Foi um sistema de três níveis similar ao da teoria apresentada por Dunker que Roberto Medeiros implementou na Neoenergia, empresa com 12.200 funcionários em 18 estados brasileiros. "Criamos, como orientador, o recurso de uma curva de comportamento ético, que tem tido muita adesão", conta. "Na parte mais baixa da curva, está o que chamamos de comportamento reativo ou dependente - que é o de quem apenas se conforma às normas, como quem só respeita o limite de velocidade quando vê o radar. Em seguida, vêm os comportamentos independentes, aqueles que cumprem a regra porque entendem que a regra é boa e precisa ser cumprida pelo bem que traz em si mesma. E no estágio mais alto está o comportamento interdependente, que é quando a pessoa começa a trabalhar no coletivo. Não só cuido do meu comportamento como ajudo e influencio meu colega", diz.

Para Medeiros, foi fundamental que esse sistema fosse desenvolvido apoiado em estudo e pesquisa, porque isso garante que ele não fique "ao sabor das ondas". "Nosso Sistema de Integralidade foi criado a partir de uma fundamentação teórica". Empresas que criam ferramentas apenas para se "blindarem", segundo ele, estão no primeiro estágio, o mais baixo.

[Quando a Lei Anticorrupção foi criada, em 2013], bateu uma espécie de desespero nas empresas de uma hora para outra. E muita gente esqueceu da importância da formação cultural nesse processo, esqueceu que uma organização não iria se tornar íntegra e ética do dia para noite simplesmente por uma questão legal ou normativa

Roberto Medeiros, superintendente de compliance da Neoenergia

O custo da mudança

A transformação da cultura das empresas citada por Medeiros é um dos pontos-chave para lideranças éticas e integridade no setor privado. E é nela que mora, talvez, o verdadeiro desafio. Porque há custos envolvidos na adesão à construção de um futuro melhor. Uma liderança ética, segundo os debatedores, precisa, acima de tudo, ter a habilidade da escuta. "Para avançar no princípio da escuta vai haver um aumento da morosidade nos processos decisórios", diz Dunker.

Tem um custo. Nós não chegamos nesse ponto que estamos porque a natureza quis. Chegamos porque fomos comprimindo os processos decisórios para que a empresa fosse mais rápida. Se a empresa é uma empresa silenciosa, é mais rápida. Mas não tem ética sem algum tipo de estrutura dialogal

Christian Dunker, psicanalista

A mudança envolve também "uma redução explícita da quantidade de normas. A normatização impede que você pense em princípios".

Dunker vai além, e acredita que a transformação das culturas precisa passar pelos processos de gestão. "Desde que Jack Welch 'descobriu' que a inoculação de medo aumenta a produtividade, criou-se a guerra de todos contra todos. A microgestão tem que acabar. Isso tem que acabar. Isso não faz bem. Se a gente quer mudar a moral, não pode ter gestão à base da indução infinita de sofrimento".