Contra covid, união comunitária é regra em periferias da América Latina
Atual epicentro da pandemia do novo coronavírus, a América Latina vive nas periferias as consequências mais duras do isolamento social e do fechamento do comércio. Em comum, favelas brasileiras, villas argentinas e barrios equatorianos sofrem com a escassez de serviços básicos, como fornecimento de água, e com a crise econômica, que já deixou muitas famílias sem comida e sem emprego.
Segundo levantamento diário realizado pela Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, os países da região mais afetados são Brasil, Peru, Chile e México.
Por conta da pandemia, a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) estima que 11,5 milhões de pessoas devem perder o emprego na área em 2020. Os mais afetados, segundo o órgão, são as mulheres, os trabalhadores informais e os vinculados a pequenas e médias empresas. O resultado ao fim deste ano será o aumento da pobreza, que deve alcançar 34,7% da população latino-americana (ou 214,7 milhões de pessoas), e da extrema pobreza, que pode chegar a 13% (que representa 83,4 milhões) dos habitantes.
Em diferentes países, a saída encontrada pelos moradores das periferias têm sido se organizar para tentar frear o avanço do coronavírus, montando redes de apoio entre vizinhos e garantindo uma refeição aos que não têm o que comer.
Argentina: delivery popular
No final de abril, Ramona Medina e outros moradores da Villa 31, uma das maiores favelas de Buenos Aires, usava as redes sociais para denunciar a falta de água no bairro. Não era a primeira vez que isso acontecia, mas naquele momento parecia uma contradição que as campanhas pedissem isolamento social e higienização das mãos para evitar contágios por coronavírus.
Fundada na década de 1970, Villa 31 fica ao lado do Puerto Madero, zona com um dos metros quadrados mais caros da cidade.
Depois de duas semanas a água voltou, mas Ramona foi internada, entubada e faleceu vítima de Covid-19. Assim como ela, vários casos (suspeitos ou confirmados) apareceram no bairro depois que as torneiras secaram.
"Identificamos os primeiros casos e pedimos um protocolo às autoridades, o que não aconteceu. Um deles vivia com a família em uma casa de poucos cômodos, dividia o banheiro com mais treze pessoas. Então, decidimos apoiar essas famílias com produtos de limpeza, comida e informação para diminuir o risco de contágio", diz Lilian Andrade, da organização La Poderosa, entidade que nasceu na Argentina, mas está presente em favelas e bairros periféricos de várias cidades da América Latina.
Somavam-se a esse problema a falta de estrutura hospitalar, de saneamento básico e a fome, que chegava com o endurecimento das medidas de isolamento social.
Foi aí que os restaurantes comunitários, que distribuem comida gratuitamente feita por voluntárias, viram a demanda explodir, e os próprios moradores tiveram de se juntar para lidar com o problema. "Uma das principais características do bairro é a organização e a incidência política", explica Gisele Merida, do grupo El Hormiguero (em português, "o formigueiro"), também na Villa 31.
A própria Gisele viu o companheiro, que ajudava famílias a se cadastrarem para receber o auxílio do governo em meio à pandemia, ser diagnosticado com Covid-19. "Ele começou a sentir dores de garganta, de cabeça e pensamos que era gripe, até um amigo mandar uma mensagem dizendo que estava doente e tinha sido confirmado", conta.
Na Villa Azul, localizada na zona metropolitana de Buenos Aires, os moradores organizaram uma espécie de delivery de comida para as famílias com casos confirmados ou que vivem com pessoas do grupo de risco, em um modelo que também foi desenvolvido em Paraisópolis e outras favelas de São Paulo.
Essa villa miseria (termo usado na Argentina para as favelas) foi isolada pelas autoridades locais, depois de um pico de casos. Ninguém podia entrar nem sair.
"Sabemos o que é sentir fome, sabemos o que é passar por essa pandemia, o Estado claramente não se está sendo responsável, então também vamos a outros bairros para ajudar", diz Lilian. E olha que a Argentina é um exemplo positivo, com lockdown logo no começo da pandemia e muito menos casos em relação ao vizinho Brasil. Mas os pobres, lá como cá, são o elo frágil da cadeia.
Equador: colapso e toque de recolher
Em abril, as imagens mais chocantes do novo coronavírus na América Latina vinham da cidade de Guayaquil, a segunda maior do Equador. Os corpos queimados nas ruas e o desespero das famílias mostravam o caos nos sistemas de saúde e funerário. "Isso aconteceu em todas as regiões, mas afetou especialmente as pessoas que viviam nos bairros mais pobres. Faltava até formol", conta María Dolores Campoverde, responsável da área de saúde da ONG DYA (Desarrollo y Autogestión) no Equador.
Em Guayaquil, ela atua na região de Monte Sinaí, uma favela onde quase 130 mil moradores não têm acesso a água potável nem esgoto, quase todos vivem de trabalhos informais e a pobreza se acentuou em meio à pandemia.
Na região, os líderes comunitários montaram um sistema de vigilância, com compartilhamento diário de informações por telefone e WhatsApp, sobre casos suspeitos ou confirmados de Covid-19, pessoas em situação de abandono ou do grupo de risco, além de famílias em situação de pobreza extrema. "Esse monitoramento é simples, feito pelos próprios vizinhos, que relatam que o outro esteve toda noite se queixando de dor ou que faz dias que não tem notícias de alguém", conta Dolores.
Na vizinhança, também há uma rede de informação e apoio às famílias com casos graves e doação de alimentos e kits de higiene para a comunidade.
No litoral do país, os moradores de um condomínio construído para os desabrigados do terremoto que destruiu parte da cidade de Pedernales, em 2016, também dependem da solidariedade para sobreviver. No bairro Ciudad Jardin Pedernales, vivem cerca de 1.300 pessoas, que até antes da pandemia trabalhavam com a pesca ou a venda de frutas e verduras nas ruas da cidade.
"Com o fechamento do comércio e a determinação do toque de recolher a partir das 14h, a maioria ficou sem trabalho. No meu caso, eu tinha umas reservas, mas começamos a ver que havia vizinhos em situação complicada, que estavam ficando sem ter o que comer", conta Daniel Borja, morador da comunidade.
Além de repartir o pouco que tinham, um grupo se reuniu para acionar organizações que os apoiaram na época do terremoto, como a Kitu Tambo, que desde Quito lançou em maio uma campanha de doações para comprar comida, medicamentos e kits de higiene para a comunidade.
Nas últimas semanas, começaram as surgir os primeiros casos de Covid-19 entre os moradores. "Levamos um vizinho para o hospital, mas ele foi mandado de volta para a casa. Dois dias depois, disse que estava mal e não podia respirar. Juntamos dinheiro, pagamos 45 dólares por um exame particular, que efetivamente deu positivo, e só aí foi internado", diz Daniel.
Na capital Quito, o Movimento Barrios en Lucha, que atua pelo direito à moradia nas cidades, tem feito campanha para doar alimentos especialmente para mães solteiras, as mais afetadas pela crise, segundo a organização. "O futuro para as famílias pobres no Equador é incerto. Não há trabalho, não se pode sair de casa, as pessoas estão sobrevivendo dia a dia", afirma Amanda Yétz, coordenadora da organização.
Colômbia: panos vermelhos e ex-FARCs
Após um mês de quarentena, que começou em março, panos vermelhos começaram a serem vistos pendurados ao lado de fora de casas de bairros pobres na Colômbia. Esse era o sinal de que ali vivia uma família que não tinha o que comer.
"Isso começou em Barranquilla [cidade no litoral] e foi muito dramático. Em algum momento, todas as casas de um bairro tinham panos vermelhos e a ajuda muitas vezes não era suficiente para todos que tinham fome", conta Pilar Lizcano, porta-voz da organização Ciudad en Movimiento.
A mobilização silenciosa serviu como um amplo chamado à solidariedade, primeiro compartilhando comida entre vizinhos e depois com doações vindas de outros lugares do país. "Foram organizadas muitas 'panelas comunitárias', quando todos juntavam o que tinham e cozinhavam para 50, 60 pessoas. Foi a solução imediata que encontramos", diz Pilar.
Diante disso, a organização começou uma campanha nas redes sociais, que até agora já garantiu a distribuição de quase 500 cestas básicas e 60 kits de higiene para famílias de bairros periféricos de Cali e Bogotá. O passo seguinte foi oferecer também ajuda psicossocial às famílias pobres. "Se uma pessoa sente que a situação passa do limite, que não dá conta, temos à disposição um atendimento telefônico ou virtual", afirma.
As zonas mais vulneráveis de Bogotá também receberam ajuda vinda da zona rural do Estado de Tolima, especificamente da Cooperativa Tejiendo Paz, criada em 2018 por ex-combatentes das FARCs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).
Diante da contingência sanitária e com as máquinas de costura paradas, os trabalhadores decidiram produzir máscaras e doá-las para cadeias públicas, hospitais, asilos, comunidades indígenas e periféricas da cidade.
"A nossa luta sempre foi pelo povo, pelos mais vulneráveis, pelos desfavorecidos. Por isso, já fizemos mais de 18 mil máscaras, que foram distribuídas com a ajuda de organizações parceiras", afirma o gerente da cooperativa, Gonzalo Beltrán.
Na comunidade onde vivem os ex-combatentes, a proibição da entrada de pessoas externas e protocolos próprios de higiene fizeram com que até agora nenhum caso de Covid-19 tenha sido diagnosticado.
Atualmente, a marca Manifesta lançou uma campanha para financiar a produção de máscaras, o que deve apoiar financeiramente os cooperados e ajudar na prevenção ao coronavírus em áreas indígenas da Colômbia.
México: compra coletiva de comida
Cercada de arranha-céus e prédios espelhados de uma das zonas comerciais mais ricas da Cidade do México, a Cooperativa Palo Alto é um bairro popular que há 50 anos resiste às investidas de construtoras na região. É chamado de cooperativa, porque o coletivo fundado em 1970 por trabalhadores, a maioria imigrantes vindos de outros Estados do México, é dono do terreno e de todas as 272 casas do bairro.
A maioria dos moradores é formada por autônomos, que prestam serviços como pedreiros, marceneiros, eletricistas etc., ou mantêm pequenos restaurantes, em que os principais clientes são aos funcionários das multinacionais que os rodeiam. Por isso, quando a epidemia se aproximou e o governo da Cidade do México decretou a suspensão de todos os serviços não-essenciais, muitos perderam a principal fonte de renda.
"Reunimos alguns moradores e fizemos um levantamento das famílias com maior dificuldades econômicas, e encontramos ao menos 50 nesta situação. Além disso, todos temos alguma pessoa do grupo de risco em casa, idosos ou com alguma doença crônica", diz a moradora Fabiola Cabrera.
Com os comércios fechados e a drástica redução da renda, a saída foi montar uma comissão para acionar pequenos produtores da região e garantir o fornecimento de comida a preços mais baixos. Quem não tem como pagar, recebe uma cesta básica, com carne, frutas, verduras e ovos, financiada pelos demais moradores. "Assim, ninguém precisa sair para fazer compras, não passa fome e diminuímos o risco de contágio", afirma Fabiola.
Em grupo, decidiram também adotar protocolos locais para combater o coronavírus. Como só há uma rua de acesso ao bairro, a entrada de pessoas externas foi proibida e os moradores foram aconselhados a não visitar familiares que vivam em outras zonas da cidade.
Aumentaram ainda a frequência da limpeza das ruas, que deve ter a participação de ao menos um representante de cada família, e distribuíram cartazes com informações sobre medidas de prevenção, os principais sintomas associados ao Covid-19 e os canais do governo para tirar dúvidas. Até o início de junho, nenhum caso havia sido registrado na comunidade.
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