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Ideia de que não há opção à uberização legitima abuso, diz pesquisadora

Entregadores de aplicativos se reúnem na Ponte Estaiada, zona sul de São Paulo, para protestar contra a precarização do trabalho e reivindicar reajustes (1/6/2020) - Danilo M Yoshioka/ Futura Press/ Estadão Conteúdo
Entregadores de aplicativos se reúnem na Ponte Estaiada, zona sul de São Paulo, para protestar contra a precarização do trabalho e reivindicar reajustes (1/6/2020) Imagem: Danilo M Yoshioka/ Futura Press/ Estadão Conteúdo

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

02/07/2020 04h00

A greve dos entregadores por aplicativo desta quarta (1) é parte do desgaste causado pelo discurso de que são empreendedores e podem escolher como trabalhar sem a cobrança de um chefe. O processo chamado de "uberização" na verdade criou apenas um novo tipo de chefia, com ainda menos abertura ao diálogo e regras para negociar os ganhos mensais.

A avaliação é de Ludmila Costhek Abilio, pesquisadora da Fapesp e da Cesit - Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp, onde realiza o segundo pós-doutorado sobre uberização do trabalho.

Segundo ela, a pandemia aumentou a percepção entre entregadores de que o serviço de delivery é uma atividade essencial, que deve ter direitos e melhores condições de trabalho garantidas pelas empresas. Boa parte da crise é gerada pelo que a pesquisadora chama de "algoritmização" do trabalho.

Ou seja: os aplicativos são programados para mapear tudo o que trabalhadores fazem e aumentar o consumo, mas não informam critérios ou se responsabilizam pela plataforma. A consequência? Aumento da informalidade, trabalhadores mais pobres e empresas mais ricas. "A uberização é um processo de formalizar monopólios e informalizar o trabalho", diz. Leia entrevista completa.

Ludmila Costhek Abilio - Marcos Oliveira / Agência Senado - Marcos Oliveira / Agência Senado
Ludmila Costhek Abilio, pesquisadora do Cesit da Unicamp
Imagem: Marcos Oliveira / Agência Senado

Qual desgaste levou à greve dos entregadores por aplicativo?

Na pandemia, os entregadores então invisíveis tornaram-se visíveis e essenciais. É com o trabalho deles que é possível o direito ao isolamento. Surge, assim, uma consciência sobre importância do trabalho neste momento. As empresas certamente estão lucrando mais, mas os trabalhadores precisam trabalhar por mais tempo e ganhando menos. Ao longo dos anos, os motoboys têm uma queda significativa na remuneração. Inicialmente, a proposta do aplicativo era interessante: ter ganhos maiores do que em um serviço terceirizado. Mas a remuneração é diminuída, há desligamentos arbitrários e retirada de bonificações devido ao aumento de procura dos motoboys por trabalho nas plataformas. Fica muito claro como a uberização funciona em plena pandemia. São essas condições que levam a gente a entender e pensar que o trabalhador sempre se arriscou.

Resumidamente, o que é a "uberização"?

Em três aspectos, a uberização é uma nova maneira de gerenciamento, controle e organização do trabalho. O trabalhador não é mais um empregado. E apesar de trabalhar a hora que quiser, há a criação de um trabalhador informal que é vigiado por algoritmos. Ou seja: você pode mapear o trabalho de 200 mil motoboys, distribuí-los no espaço e determinar o valor do trabalho. A uberização é um processo de formalizar monopólios e informalizar. Ao mesmo tempo, são formados monopólios de empresas que possuem todo esse poder nas mãos e de trabalhadores cada vez mais informais.

E os entregadores devem ser considerados e contemplados pelas mesmas leis trabalhistas convencionais?

Há divisões sobre o tema até mesmo entre os trabalhadores por aplicativo. Embora reconhecidos como 'patrões de si próprio', mas são inteiramente subordinados a regras.

Ou os consideramos como empregados ou deveríamos pensar em novas categorias jurídicas que garantam a eles uma rede de proteção. O que não se pode pensar é que eles não estão subordinados a estas empresas, que precisam ser responsabilizadas por seus trabalhadores

Ludmila Costhek Abilio, pesquisadora da Unicamp

Parece que há um desgaste sobre a ideia de que entregadores são empreendedores. Por quê?

Em meu primeiro trabalho sobre uberização, escrevi que trabalhadores por aplicativo são "nanoempreendedores de si". Passou um tempo, escrevi um artigo para defender que não devemos chamá-los de empreendedores, mas de "empreendedores ou gerentes autosubordinados". Fora dos apps, um empreendedor tem um negócio, um investimento. Já o "auto subordinado" define se vai alugar ou comprar uma moto ou bicicleta e qual horário e em qual região trabalhar. Mas todas as decisões são subordinadas à forma que a empresa distribui o trabalho no território.

Olhando mais de perto, as decisões de cada entregador são pautadas na busca por decifrar as regras dos aplicativos. Por exemplo: ele pode decidir ir para o centro, onde estão concentradas mais viagens. A ida até o centro da cidade gera dados, o que leva a cada vez mais trabalhadores nesta região e organização dos apps no território. Os entregadores tomam decisões em busca de entender o sistema que parece autogerido por ele mesmo, mas não o é. O Paulo "Galo" usa um termo: "empreendedorismo da sobrevivência".

O que seria gerenciamento por algoritmos?

Tudo o que o trabalhador faz é transformado em dado. Há estudos que mostram que mesmo questões raciais, de gênero e até mesmo modelo de veículos são cruzados para determinar quem recebe tal corrida no aplicativo. Os algoritmos parecem como algo neutro, aleatório, como uma roleta. Não são assim. Há uma série de critérios criados por humanos que programam, automatizam e mapeiam a vida cotidiana dos trabalhadores e domina a função. São vidas transformadas em dados

Existe desigualdade até mesmo entre os entregadores?

Há uma divisão entre motoboys e bikeboys. As formas de remuneração do bikeboy são diferentes das do motoboy. Entre os motoboys, há categorias diferentes de remuneração. Na Uber, há quem ganha mais. Há quem ganhe menos. As regras não são claras.

O bikeboy costuma ser um jovem, negro, periférico. É uma ocupação tipicamente juvenil, que usa a própria energia física do trabalhador. É a base da base

Ludmila Costhek Abilio, pesquisadora da Unicamp

Por que as regras não são claras?

As empresas têm um poder enorme e até agora não precisam explicar. Sem a obrigação, a falta de regras torna-se o próprio modus do funcionamento do sistema. Na tentativa de decifrar como o negócio funciona, o trabalhador sempre dá o melhor de si por não ter nada garantido. O dia começa sem que ele saiba se será desligado, quais podem ser os motivos para a punição, desconhece quantas horas serão necessárias trabalhar para sobreviver ou quanto a entrega valerá. A maneira de ganhar o do dia não está nas mãos dele, mas o trabalho está na mão das empresas. A greve mostra que o que está em jogo é justamente esta relação tão desigual entre as empresas e os trabalhadores.

Há um termo usado para descrever a uberização: a amadorização. Pode explicar melhor?

O motoboy tinha uma identidade profissional clara. A regulação, o valor da hora trabalhada e o modus de funcionamento eram claros e desenvolvidos por empresas terceirizadas. Havia, por exemplo, uma fila de atendimento, remuneração por quilometragem e afins. Era uma identidade formal dos trabalhadores. Com os aplicativos, o trabalho não tem relação estatal e perde sua identidade profissional. Um taxista e um motorista da Uber são um bom exemplo: os dois podem dirigir muito bem ou muito mal. Mas o taxista passou por uma série de certificações do estado — como a placa vermelha, o logo — e tem uma identidade de taxista profissional clara.

Parecer que ser motoboy é um bico é um absurdo. As pessoas estão trabalhando dez horas por dia, sete dias por semana. Como isso pode ser chamado de bico?

Ludmila Costhek Abilio, pesquisadora da Unicamp

Os trabalhadores por aplicativos são postos como trabalhadores amadores, sem certificações ou testes. Todas as certificações são diferentes: o carro dele não é escolhido por ter sido devidamente verificado pelo estado. O que define a habilidade do profissional é se ele foi bem avaliado pelos consumidores e por confiança na marca. Os motoboys continuam a trabalhar, mas aos poucos transformam-se em uma categoria de trabalho amadora.

Quais áreas podem ser afetadas pelo mesmo processo?

O Paulo "Galo" diz que a uberização é uma tendência, e não uma luta só dos entregadores. As formas de controle e mudança estão passando pelo mundo do trabalho, então muitas ocupações "uberizaveis" podem perder a identidade profissional e regulações públicas que incidem sobre elas, bem como se alimentar de um processo de amadorização. Já temos exemplos, como os motoboys, motorista de caminhão, também manicures, empregadas domésticas, advogados, tradutores e professores.

A uberização, aliás, tem muito a ver com as plataformas de ensino à distância. Toda profissão cuja mão-de-obra é usada somente quando acionada por alguém, pode ser uberizada. É mais fácil pensar quais profissões não são uberizáveis

Ludmila Costhek Abilio, pesquisadora da Unicamp

Há a análise de que os trabalhadores estariam em situação pior sem o serviço de entrega, uma vez que o desemprego é alto. Não é melhor ter o serviço por app do que não tê-lo?

O discurso de que é melhor trabalhar de qualquer forma é um discurso que foi fortalecido nas últimas décadas. E é perigoso, pois coloca nas costas do trabalhador todo um peso da transformação do mundo do trabalho. Os trabalhadores, então, arcam cada vez mais com riscos e o discurso é de que o mais importante é continuar a trabalhar. Ao mesmo tempo a gente não olha para os processos de aumento na concentração de renda e aumento da desigualdade.

Consolidou-se muito forte a ideia de que não há alternativa para o que vivemos. Mas falta um trabalho político para averiguar qual o destino do capital e quem domina o dinheiro da população mundial vindo com este tipo de mudança no trabalho. É preciso tirar um pouco o foco de que é 'melhor trabalhar, do que nada', pois é visão que legitima as formas de exploração do trabalho

Ludmila Costhek Abilio, pesquisadora da Unicamp

Falando em política, quais brechas nas leis facilitam esse tipo de trabalho?

As empresas tiveram uma atuação monolítica no mundo e foram bem sucedidas. É preciso não olhar o Estado como uma força monolítica. Houve no estado movimentos que garantiram o espaço para a atuação destas empresas, e outros que tentam freá-las. Não dá para acreditar no papo de que o Estado tomou um susto e de repente apareceram milhares de trabalhadores por aplicativo no país. Houve espaço para as empresas atuarem. Ao mesmo tempo há um movimento de regulação e investimento. Até agora, as vitórias são pequenas para os trabalhadores e não há uma legislação que verse sobre a relação entre a empresa e os entregadores.

Havia trabalho precarizado no Brasil antes dos serviços por aplicativo. O que conecta a condição do autônomo com a dos entregadores?

O processo de "pejotização", de transformar o trabalhador em uma pessoa jurídica, que apesar de subordinado é visto como uma empresa. Há o MEI, que também foi criado como uma maneira de formalizar trabalhadores, mas que também continuou como subordinada. A condição do trabalhador uberizado é parecida com a do trabalhador autônomo, que sempre foi precarizado. Mas, diferentemente do convencional, o entregador está abaixo dos algoritmos e não tem poder de negociação e nem clareza sobre o próprio trabalho. Uma costureira, por exemplo, pode manter acordo com um fornecedor e saber quantas calças deverá costurar para ganhar a mais no final do mês. O motoboy, o motorista começam o dia sem saber "quantas calças vão costurar" e ao mesmo tempo estão disponíveis. Se o entregador diz que ficou 12 horas trabalhando, é porque realmente foram 12 horas logadas no aplicativo. Apesar disso, só recebeu o que fez. Boa parte do tempo não foi remunerada. É um autônomo que está subordinado de novas formas.

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