"Cidadão, não": Revolta à fala mostra que Brasil tem potencial para mudar
"Cidadão, não. Engenheiro civil". A fala de uma mulher durante fiscalização de bares no Rio de Janeiro tomou conta do noticiário e das redes sociais desde que foi veiculada na noite de domingo (5).
Numa sociedade historicamente acostumada a "carteiradas" e perguntas como "Você sabe com quem está falando?", a reação de revolta é vista com bons olhos. "O Brasil mudou", diz Marcos César Alvarez, professor de sociologia na Universidade de São Paulo e coordenador do NEV (Núcleo de Estudos da Violência) na instituição.
"Pode não estar no ideal, mas existe uma indignação que provoca mudança. A construção da cidadania é multidimensional. Ela vem da educação, vem do convívio, vem dos espaços sociais... E essas frentes estão em constante movimento. Então não é que não avançamos, avançamos. Mas temos que continuar questionando toda e qualquer situação que não valorize a cidadania."
Em entrevista a Ecoa, o especialista explica por que falas como esta são tão enraizadas no Brasil, o que isso diz sobre o momento atual e que caminhos para o futuro o caso ajuda a traçar.
Por que a noção de cidadania não é valorizada no Brasil?
Pegando o exemplo do que aconteceu no Rio de Janeiro. Na fala sobre o tal engenheiro, ele não entende o 'cidadão' de uma forma positiva. Quando o fiscal chama ele de "cidadão", o que está tentando dizer: "Você como sujeito pleno dessa sociedade, coloque a máscara", ou, então, "evite aglomeração". É uma autoridade de saúde dizendo: "Olha, você, cidadão, por favor faça o mínimo". E o que o sujeito faz? Responde com uma identidade particular, dizendo que não é todo mundo: "Sou engenheiro".
Esse tipo de resposta é justamente uma tradição do Brasil, de hierarquização da cidadania. O [antropólogo] Roberto Augusto DaMatta fala muito sobre isso, de que no Brasil é sempre: "Você sabe com quem está falando?". Ele faz uma contraposição aos EUA onde a resposta padrão seria: "Quem você pensa que é" se uma autoridade age de forma violenta por estar acima da lei. Aqui, no Brasil, a gente responde o contrário: "Você sabe com quem está falando? Eu sou engenheiro, eu sou professor universitário, eu sou advogado, eu sou juiz...". Essa contraposição é esquemática, mas é interessante para a gente ver a dificuldade de afirmação da cidadania como algo positivo no Brasil.
E de que maneira essa cidadania hierarquizada acontece?
Para a sociologia, a cidadania é tanto um conceito para dar conta de transformações empíricas, da história, quanto normativa, o que se espera. Então, de forma mais geral, a cidadania é a ideia de você fazer parte integralmente de uma sociedade: se você é cidadão é porque você participa da riqueza social, dos valores, dos direitos... Essa é a definição mais comum, mais moderna. E essa é a ideia do Marshall [Thomas Humphrey Marshall, sociólogo britânico do início do século 20], que também fala da geração de direitos. Por exemplo, olhando para a Europa, primeiro os direitos civis conquistados, depois os direitos políticos - direito a votar, e participar das eleições -, e depois os direitos sociais no século 20.
A discussão em torno da cidadania é que, evidentemente, todos os países têm trajetórias diferentes e particularidades que implicam em sua prática. No Brasil, o que geralmente se discute são as dificuldades de afirmação dos direitos civis, como, por exemplo, discussão sobre tortura, sobre abordagem policial, ao mesmo tempo em que se nota um avanço nos direitos sociais e políticos nos últimos anos. Então, no Brasil ainda se tem muito essa questão de uma cidadania regulada, de cidadania hierarquizada.
Essa hierarquia é o que nos afasta do "bem comum"...
O bem comum é a parte normativa. A gente quer chegar lá. Quando se diz: "É importante usar máscara, não só para se proteger, mas para proteger os outros". É uma ideia de bem comum. Mas por que isso ainda é uma questão no Brasil? Quando você tem uma discordância de lideranças políticas em relação às melhores maneiras de se combater uma pandemia, é de esperar que gere atitudes semelhantes ao que aconteceu no Rio de Janeiro, por exemplo.
O problema vem de cima. Ou seja, por mais que seja um problema da sociedade, a autoridade política é que sinaliza. Se a gente precisa de união, de senso de coletividade... A partir do momento que você tem conflito, com representantes políticos que não defendem o isolamento, por exemplo, tudo piora. Daí claramente as pessoas se sentem no direito de enfrentar qualquer autoridade de saúde ou de quebrar qualquer medida de proteção. Se a autoridade máxima do país não está seguindo, por que eu vou seguir enquanto um cidadão? No momento em que as próprias lideranças não apostam na construção de uma cidadania e desacreditam na ciência, tudo implica para que um indivíduo questione o uso de uma máscara, questione os perigos de uma pandemia.
E gera oportunidade para diversas atitudes equivocadas, como se melhor do que ser cidadão, é se mostrar como qualificado: "Olha, eu sou engenheiro. Eu não me coloco enquanto pertencendo a um grupo, a uma coletividade. Sou engenheiro, sou médico... "
Como se ser colocado igual ao outro, com os mesmos direitos, fosse ruim...
No Brasil isso tem uma longa tradição, que é a de querer hierarquizar a sociedade, de não querer se ver igual ao outro. É como se a pessoa se colocasse em uma situação de vantagem, como se a pandemia não o afetasse, porque ele se sente melhor que outro, por sua profissão, ou por sua classe social. É aquele velho ditado: aos amigos tudo, aos inimigos a lei. Eu trato igual o inimigo, ele tem a lei impessoal. Os amigos, não. É uma discussão de como estamos o tempo todo repondo, mesmo num contexto democrático, essas hierarquias.
Nesse contexto, o quanto a ideia de diploma é sinônimo de poder? A ideia de achar que exercer uma profissão te faz melhor.
Isso remete novamente à trajetória da sociedade brasileira. A formação das elites, durante muito tempo, passava pelas principais faculdades que sempre foram: engenharia, medicina e direito. Você tem uma hierarquia, que ainda hoje está presente.
Muitas famílias de classe média recebem com um certo tipo de rejeição, desconfiança, quando os filhos decidem escolher outras profissões, por exemplo, já presentes na família. Hoje em dia você tem um mercado de trabalho em que você pode se dar bem em muitas áreas, mas essa hierarquia de cursos elitizados ainda prevalece. E vem mais atrelada a você possuir o título, o diploma, do que o conhecimento.
No caso do engenheiro civil, eles não tinham argumentos cabíveis para questionar o fiscal, a autoridade, ali em questão. Quiseram contrapor autoridade x autoridade, dizendo "Sou engenheiro civil, melhor que você". Dizendo: olha, com essa profissão tradicional que tenho, estou por cima. Ou seja, isso reflete nessa nossa trajetória, do ensino superior e de determinadas profissões como distintivas.
Quando você tem esse tipo de discussão, em meio à pandemia, ela se torna ainda mais equivocada. Por que o coronavírus não vai ser combatido só por uma área. Isso está muito claro, então não tem sentido. É um combate que implica em desigualdade social. Não cabe espaço para desvalorizar autoridades. Aquele fiscal poderia ter só ensino médio, se ele está cobrando algo necessário, que está estabelecido como norma e que visa a ajudar a diminuir os riscos de se contrair o vírus, a troco de quê você vai questioná-lo?
Talvez por ele se sentir um 'cidadão de bem'...
Desde o início da redemocratização do Brasil, nos anos 1980, começou a surgir um discurso contrário aos direitos humanos, que hoje em dia está muito forte. A ideia de que "bandido bom, é bandido morto" e de que o "cidadão de bem" é que precisa ter direitos, é sempre uma fala particularista. A cidadania é para todos.
Se eu cometer um crime, vou ser punido. Mas não de uma forma absurda, não com tortura. Vou ser punido seguindo a lei. E por que? Porque eu sou um cidadão. Então veja, a princípio, no Brasil, todos deveriam estar amparados pela cidadania. E, claro, a população carcerária também, que sempre é alvo de críticas e polêmicas quando se fala em condições mínimas de sobrevivência. No Brasil, existe um discurso contrário contra a defesa dessa população, e são as classes políticas e elites que reforçam esse tipo de pensamento, até mesmo programas de televisão, que cobrem casos policiais, que vendem a ideia: "Se eu sou um cidadão de bem, a polícia me protege".
Esse 'cidadão de bem' acha que pode recusar a máscara, acha que não comete nenhum crime, mas sonega imposto de renda, passa o sinal vermelho, faz uma infinidade de ilegalidades... Só que ele se acha "cidadão de bem" por um lugar moral superior aos outros. E isso tudo é contrário à cidadania.
Nenhuma sociedade minimamente civilizada vai ser construída por esses valores. A cidadania sai do âmbito moral e restrito. Não é o âmbito familiar e religioso. O âmbito da cidadania é: todos devemos ser iguais perante a lei. E é isso que no Brasil é trabalhado o tempo todo contra.
Durante a pandemia, isso ficou mais exposto?
A gente tem um ideal de cidadania que não é fácil de se realizar em uma sociedade tão desigual como a brasileira. Não é um problema só individual. No caso da pandemia, se eu não tenho água encanada, esgoto, se não posso trabalhar de casa, eu não vou conseguir fazer um isolamento social, um distanciamento, como alguém de classe média, que mora em Perdizes, em São Paulo. Entende? Então a questão é que esses valores têm condições concretas para serem realizados, e em uma sociedade tão desigual não é possível que aconteça de forma geral. O Brasil é uma espécie de negação da cidadania. E isso se manifesta tanto na população mais vulnerável, que tem dificuldades para realizar o distanciamento, como das classes médias e altas que parecem que não tem os valores e senso de coletividade, de pensar no outro.
E como conseguimos mudar isso?
A boa notícia é que as pesquisas mostram que a construção da cidadania é multidimensional. Ela vem da educação, vem do convívio, vem dos espaços sociais... Então, é uma frente que está sempre se movimentando.
O fato da fala sobre o engenheiro ter tido uma repercussão negativa, contrapondo os princípios básicos de cidadania, já mostra que o Brasil mudou. Pode não estar no ideal, mas existe uma indignação que provoca mudança. Então, não é que não avançamos, avançamos. Mas ainda é muito preocupante todo e qualquer tipo de comportamento que não visa o bem comum, situação que, de alguma maneira, é referendada por determinados grupos políticos que não valorizam a cidadania.
E qual lição podemos tirar de repercussões como essa, de "Não sou cidadão, sou engenheiro"?
O que essa pessoa manifestou, infelizmente, é um discurso que está presente no Brasil. Mas para além do "julgamento virtual" que existe nessas situações, o mais proveitoso é que se crie um espaço de reflexão: Como chegamos nisso? Por que todo esse discurso do "cidadão de bem", essa infinidade de programas televisivos enaltecendo a violência, é o que de fato deve ser analisado e criticado. E, sim, é claro que uma fala como essa não surgiria tão fácil em países que avançaram mais em termos de cidadania. O que eu acho que temos que questionar também é isso: como que a gente avança?
Em Londres, por exemplo, a abertura dos pubs também causou aglomerações. Então não é só no Rio de Janeiro, não é só no Leblon. Não podemos usar a máxima de que é "coisa de brasileiro", de que o Brasil é o pior lugar do mundo e que não vamos avançar nunca em termos de cidadania. São situações que também estão acontecendo em outros lugares do mundo, o Trump nos Estados Unidos... São momentos para refletir o que claramente a pandemia está escancarando: uma sociedade desigual, com muitas formas de autoritarismo circulando, e a dificuldade de aceitar essa cidadania como bem comum.
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