Descarte de milhões de máscaras na pandemia pode virar problema ambiental
Em tempos de Covid-19 e profusão de "fake news", você já deve ter ouvido alguma teoria da conspiração sobre máscaras. A mais disseminada — e patética delas — diz que o uso constante do aparato de segurança causa falta de oxigenação no cérebro e blá blá blá. Tem quem acredite, infelizmente, mesmo com o fato incontestável de que muitos profissionais, como os cirurgiões, já utilizavam o equipamento de proteção por horas a fio muito antes da pandemia torná-la uma necessidade popular.
Mas há, sim, um efeito colateral dessa situação que fez com que, de uma hora para outra, toda a população esteja — ou pelo menos deveria estar — utilizando proteção facial no dia a dia. Estamos falando do lixo. Máscaras de tecido podem e devem ser reutilizadas, mas invariavelmente elas terão um fim. Se descartadas de qualquer jeito, o impacto ambiental acaba sendo mais um dano da maldita Covid-19.
Com que máscara eu vou?
Especialistas e a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) concordam em um ponto: é melhor usarmos máscaras caseiras, feitas de tecido, do que as hospitalares descartáveis. "São muito específicos os grupos que devem utilizar esse tipo de máscaras [hospitalares]. Em geral, elas devem ser reservadas a uso hospitalar mesmo", comenta a Ecoa o médico Carlos Rodrigo Zárate-Bladés, diretor do Laboratório de Imunorregulação da Universidade Federal de Santa Catarina.
Desde março envolvida numa força-tarefa para a produção de máscaras e outros equipamentos de proteção relativos à contenção da pandemia, a professora Dulcicléia Antunes, coordenadora do curso de Design de Moda da Universidade de Passo Fundo (RS), ressalta que a "utilização das máscaras reduz a contaminação e protegem as pessoas". Ela elenca três tipos de materiais que podem ser utilizados para tal:
- Tecido lavável e reutilizável -- com preferência, segundo ela, por 100% algodão. "São eficazes pois seguram as gotículas de saliva quando a pessoa fala ou espirra, porém devemos ter muito cuidado com o manuseio, sempre pelas alças, já que o contato com as mãos pode transportar o vírus sobre as superfícies", afirma ela.
- Descartáveis de TNT. "Para usos mais urgentes e necessários, pois devem ser descartadas em no máximo quatro horas", explica.
- Cirúrgicas -- confeccionadas com TNT impermeável e geralmente gramatura acima de 40g. "São as utilizadas como equipamento de proteção individual da área da saúde ou para quem tem contato com pessoas que possam estar infectadas."
Apesar as mais protetoras serem as de TNT, conforme explica o físico Paulo Artaxo Netto, pesquisador da Universidade de São Paulo, as mais populares são as máscaras de pano, em que a eficiência e a durabilidade variam conforme o material e quantidade de camadas.
Zárate-Bladés lembra que a recomendação é que elas tenham três camadas de tecido, trama fechada — "mas não tão fechada que dificulte a respiração" —, e nada de costuras no meio, apenas em suas bordas.
Ao longo de uma jornada de trabalho, por exemplo — para aqueles que não estão em home-office — é recomendável que a máscara seja trocada pelo menos uma vez. Mas, conforme a atividade da pessoa, se a mesma ficar muito úmida por gotículas de saliva ou suor, é preciso substituir mais vezes, até mesmo de hora em hora.
Já estamos todos cientes disso, mas não custa reforçar o que enfatiza Artaxo: na atual situação do Brasil, é preciso usar máscara o tempo todo em que estiver fora de casa. "Mas é fundamental manter o distanciamento social para diminuir a circulação do vírus. Ainda não há outra medida efetiva. Então, fique em casa. Só saia se realmente precisar", diz ele.
Excessos na lavagem podem reduzir vida útil
As máscaras de tecido não são eternas, é claro. Primeiro, porque precisam ser lavadas a cada uso. "Temos de tratá-la como nossa camiseta preferida: precisa ser bem lavada e ponto. Nada a mais. Porque a cada vez que adicionamos um tratamento, estamos danificando o tecido, fazendo com que fique menos compacto e perca as características necessárias de filtração", pontua Zárate-Bladés.
Especialistas recomendam deixar de molho por meia hora em água e sabão. Ou em uma solução diluída em 10% de água sanitária. Fazer qualquer outra coisa vai acabar é diminuindo sua validade.
"Devemos ter em conta que a máscara não precisa passar por excesso de tratamento para ser higienizada. Não precisamos submetê-la a fervura, micro-ondas, nem mesmo passar em ferro quente", diz.
Segundo o médico, pode-se, sim, colocar na máquina de lavar; mas é preciso atentar para o programa da lavagem, garantindo que a peça fique de molho por pelo menos 30 minutos.
E quantas vezes esse processo pode ser repetido? Não há um consenso. Até porque varia de acordo com o tecido — é preciso observar se há desgaste na trama. Em média, estima Zárate-Bladés, uma mesma máscara pode suportar até 30 lavagens.
A hora do descarte
Aí é que mora o perigo ambiental. "Este talvez seja o ponto mais importante e preocupante: o descarte de máscaras em tempos de pandemia nem sempre é correto. Com um descarte impróprio podemos estar gerando um problema muito grave para o meio ambiente", comenta Antunes.
Autora do livro "Alinhavos", primeira obra sobre moda sustentável para crianças", a estilista Alessandra Ponce Rocha tem refletido sobre o assunto. "Se não forem descartadas corretamente, [as máscaras] se juntarão à montanha de resíduos têxteis e roupas descartadas de maneira indevida", afirma.
De acordo com a estilista, estimativas atuais dão conta que de cada 100 peças de roupa fabricadas, 60 vão para o lixo com menos de um ano de uso. "Se incluirmos aí uma média de cinco máscaras de tecido por habitante, só na cidade de São Paulo seriam 60 milhões de máscaras descartadas? Só de pensar na enormidade desses números já dá para calcular o tamanho do impacto ambiental do descarte indevido", diz ela. Detalhe: esta conta não está levando em conta a necessidade de adquirir novas máscaras a cada 30 lavagens.
Isso significa que já foram gastos, só nas máscaras paulistanas, 440 mil metros quadrados de tecido — essa malha toda daria para cobrir gramados de 68 campos de futebol.
E esse material pode não ser nada biodegradável. "Se forem máscaras confeccionadas de tecidos compostos por fibras sintéticas, como o poliéster, o tecido pode levar até 400 anos para se decompor", afirma Rocha. "Já os tecidos compostos por fibras naturais, como o algodão, levam no máximo um ano."
Uma alternativa seria a reciclagem. Sim, é possível reciclar tecidos. "Ele pode ser desfibrado para que essas fibras sejam utilizadas na fabricação de novas fibras têxteis sustentáveis que serão utilizadas em fiações, tecelagens e confecções", explica a estilista.
Localizada em Ferraz de Vasconcelos, na região metropolitana de São Paulo, a Renovar Têxtil é uma empresa que faz isso. Eles transformam as tais fibras em mantas, cobertores, enchimento para almofadas, entre outros fins.
"Cada tipo de tecido exige um processo diferente para ser reciclado. Os tecidos de poliamida podem ser reciclados de forma térmica pela indústria plástica, os tecidos de poliéster, algodão, viscose, etc, hoje são reciclados de forma mecânica para a indústria de não-tecidos e fios", explica a Ecoa a gerente da empresa, Daniela Passatuto Falopa. "Nem todos os tipos de tecidos podem ser reciclados, devido à sua estrutura e viabilidade econômica. Assim como o plástico, a variedade de tipos de composições de tecidos é enorme, o que também acaba dificultando a rastreabilidade e separação adequada."
E é essa viabilidade econômica, segundo Falopa, que ainda impossibilita a reciclagem em larga escala de máscaras. Ela conta que, por enquanto, apenas utilizam os resíduos gerados do corte da confecção das mesmas. Para as máscaras, em si, há a barreira do custo operacional. "Quem pagaria por isso? O processo teria um custo elevado", diz ela. "Os geradores dos resíduos não querem ter custos com a reciclagem. E para os recicladores, esse custo não compensa o valor do produto final, que é muito baixo."
Há alternativas, digamos, caseiras. Depois de bem higienizadas — como se fossem ser utilizadas novamente, ou seja, naquele processo de deixar de molho em água e sabão — as máscaras danificadas ou desgastadas podem encontrar novos usos. "É possível inclusive utilizá-la como um pano de limpeza em casa, para não jogá-la fora diretamente. Bom para o planeta", afirma Zárate-Bladés.
Para quem gosta de artesanato e quer ocupar a cabeça nesses tempos estressantes de pandemia, a estilista Rocha ainda recomenda usar os tecidos em atividades como colchas de retalhos e fuxicos. Atividades "prazerosas", que não necessitam "de grandes quantidades de tecidos" e ainda "promovem a conexão entre os membros da família", ressalta ela. Um ótimo passatempo para a conjuntura que exige ficar em casa.
Se for preciso mesmo jogar fora, especialistas lembram que elas devem ser consideradas "lixo biológico". "Quando descartamos uma máscara no lixo comum, estamos contaminando todo o restante dos resíduos que poderiam ser reciclados ou reaproveitados", afirma Antunes. "Além do risco de contaminação de aterros, lixões ou reservas hidrográficas."
Ela ressalta que existem sistemas de incineração industrial voltados ao lixo biológico. "Podemos juntar todas as máscaras, tanto de tecido quanto as descartáveis que foram utilizadas, dispor em uma embalagem resistente, e indicar nela 'lixo biológico - máscaras'. Então encaminhar para a coleta, onde o resíduo precisa ser destinado a um processo de separação e ter um destino correto, reduzindo o impacto ambiental."
Até quando?
Na vida pós-pandemia, máscaras se tornarão parte do vestuário?
Pelo menos por enquanto, a resposta é sim. "Não vamos ficar livres das máscaras se não ficarmos livres do vírus", resume Artaxo. "A questão, então, é estruturar ações que façam com que o coronavírus deixe de circular na sociedade."
Para o médico Zárate-Bladés, isso só ocorrerá, de modo simples, quando houver uma vacina disponível e a população for vacinada. "De forma mais técnica, poderíamos também dizer que [nos livraremos das máscaras] quando conseguirmos ter estatísticas adequadas que indiquem quantas pessoas já foram infectadas, venceram a infecção, estão imunes e protegidas contra o vírus."
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