Caco Ciocler: "Depois de pagar as contas, sobrou alguma coisa? Doa 1%"
Por incrível que pareça, somente agora o ator Caco Ciocler está sentindo o "tédio da quarentena". Durante os três primeiros meses de pandemia, em que o isolamento social ainda estava em alta no país, ele não conseguiu ficar parado e dedicou boa parte do seu tempo à Lista Fortes Brasil, iniciativa que colocou em prática para tentar ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade.
"Foi praticamente como abrir uma empresa", brinca. A campanha foi uma das primeiras a pedir e estimular doações de empresas para o combate ao coronavírus, e ganhou parcerias de peso com a participação de um time de artistas e amigos do ator. A ideia parecia simples: incentivar empresas a investirem parte de seu lucro em projetos sociais. Além disso, os interessados em colaborar ganhavam um bônus: propaganda de seus produtos.
"Fixamos a doação de 1% do lucro líquido para que a empresa pudesse entrar na Lista. E para não ficar só 'pedindo', resolvi abrir minhas redes sociais para divulgar gratuitamente o trabalho e o produto de quem doou. Foi aí que voluntariamente mais artistas começaram a participar, como Fafá de Belém, Rodrigo Santoro, Letícia Sabatella, Maria Ribeiro e muitos outros".
Mesmo com a forte adesão à campanha, o ator reconhece que a onda de solidariedade que se formou com a chegada do vírus vem diminuindo, em especial por uma falsa sensação de que "o pior já passou?.
"Isso não existe. A pandemia está aí. O Brasil vai passar por um período bem difícil, vai ser uma realidade bastante dura pra muita gente, por isso acho uma pena essa baixa nas doações", diz Ciocler, que além da campanha lançou um documentário durante a pandemia. Em clima de polarização política, "Partida" se passa em um trajeto de ônibus do Brasil até o Uruguai, numa mistura de realidade e ficção, em busca de um encontro com Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio.
Em entrevista a Ecoa, o ator fala sobre o que o motivou a cobrar uma ação de empresários, dá sua visão sobre a reabertura da economia e comenta a importância de artistas se posicionarem sobre questões atuais e relevantes à sociedade, como a luta antirrascista.
Bem no comecinho da pandemia no Brasil, você chegou a questionar a atitude de alguns empresários que estavam criticando o isolamento social por conta da economia do país. Foi nesse momento que teve a ideia da Lista Fortes?
O que começou a me mobilizar primeiro foi ver muitas pessoas precisando de ajuda, cabeleireiros, garçons, gente que perdeu parte da renda por conta da quarentena. Depois, o que me deixou bastante transtornado foi ver um vídeo de dois empresários falando algo absurdo para funcionários, do tipo: "Eu posso parar, posso fechar, tenho boa condição financeira, mas o que me preocupa são vocês, que dependem do trabalho e da nossa empresa".
Essa falsa preocupação me deixou com o estômago revirado. Não existia ali uma medida concreta para que aqueles funcionários pudessem voltar ao trabalho em segurança, sabe? Com o mínimo de proteção possível, distanciamento, máscaras... Nada. Era só um discurso vazio.
Aí fui pesquisar sobre os dois empresários e suas empresas, comecei a ver o quanto lucraram. Foi aí que surgiu a ideia do 1% do lucro líquido, porque juntando o valor das duas empresas, 1% já dava muito dinheiro. A partir dessa minha indignação tive a ideia da Lista Fortes Brasil.
Nos primeiros meses de isolamento acompanhamos recordes de doações. Mas parece que agora, de alguma maneira, essa "onda de solidariedade" diminuiu. Como você vê esse momento?
É um fato. As doações caíram de um tempo para cá. E é uma pena, porque a gente está em um momento muito crucial. Com essa falsa sensação de que o pior da pandemia já passou, sinto que as empresas estão preocupadas em recuperar o tempo perdido. E mesmo que a pandemia já estivesse passado, o que é uma grande falácia, os efeitos econômicos desses três meses serão absolutamente assustadores.
Vamos passar um período bem difícil, vai ser uma realidade bastante dura pra muita gente, por isso acho uma pena a baixa em doações... E é justamente por esse motivo que continuaremos com a Lista Fortes. Fechamos um capítulo, mas estamos partindo para uma nova fase. Queremos criar o hábito da doação para que todo mundo possa contribuir, não só empresas. Existem muitas formas pra isso, por exemplo, sempre que as pessoas fizerem um compra do mês, separa 1% à doação. Aumentar também a doação de sangue em 1%, por quê não?
No caso de empresas, num cenário "normal", essas doações poderiam ser recorrentes, não?
Sem dúvida. A gente não está pedindo para ninguém doar aquilo que não tem, a gente está falando do que sobra. Depois de pagar todas as suas contas, sobrou alguma coisa? Doa 1%. É largar o conceito de acúmulo, entende?
Sempre entendi que o lucro líquido de uma empresa é de autoria, claro, do empresário, da aposta e do risco que ele topou correr, mas ao menos 1% é de coautoria dos trabalhadores e consumidores, que compram daquela marca. Então a menor parte inteira possível dessa coautoria há de ser devolvida. Por isso muitas vezes eu nem falava em doação, falava em devolução. Uma maneira de socorrer a vida justamente de pessoas que são coautoras desse lucro. É até uma questão de lógica, se não for para salvar a vida de quem produz, de quem consome, não tem lucro. Muito menos lucro líquido. Então é isso, não estávamos propondo uma revolução, apenas um socorro à vida dessas pessoas.
E por falar em socorro à vida, qual sua opinião sobre essa pressão pela reabertura sem o total controle da pandemia?
Eu falo de um lugar de muito privilégio. Tenho uma casa, minha empresa não me mandou embora... Então, assim, eu posso ficar em casa. Mas entendo o desespero de pessoas que não têm o que comer. A questão não é a reabertura. O problema está desde o começo da pandemia, você não pode pedir para que alguém fique em casa sem dar condições mínimas para que essa pessoa possa fazer isso e sobreviver, entende?
Tivemos três meses de antecedência para nos preparar, a gente já sabia que o coronavírus iria chegar aqui. Mas aí entra a questão do brasileiro de achar que nunca vai acontecer nada com ele, que nunca vai acontecer nada no Brasil. O grande erro começou aí, minimizando os impactos da pandemia.
Se a gente tivesse se preparado para o isolamento, informado a população sobre a importância do uso da máscara, se a gente tivesse a garantia de que auxílio emergencial seria realmente entregue a quem precisa, hoje não estaríamos nesse cenário de mortes, e uma reabertura que, no meu ponto de vista, também acontece de maneira desastrosa.
Foi uma completa falta de organização, de prevenção e de preparação social. Nosso isolamento foi em meio a uma "guerra" de informação contra desinformação, com as pessoas sem saber no que e em quem acreditar.
Muito se fala sobre como será o retorno de atividades ligadas à indústria da cultura, do entretenimento, que dependem de teatros, cinemas, casas de show. Qual a sua visão sobre isso?
Reconheço que estamos passando por um momento terrível, provavelmente será uma das últimas atividades a voltar porque pressupõe público, aglomerações? Enfim, isso todo mundo já sabe. Tem muita gente parada, muita gente precisando de ajuda mesmo, e aqui não falo exclusivamente de artistas, mas de todas as pessoas que trabalham na indústria. Ainda assim, tenho uma visão bastante otimista de que soluções serão encontradas. Algumas já começam a pipocar, como os drive-in. É impossível represar a cultura.
Você acha que de alguma maneira o isolamento fez com que as pessoas valorizassem mais a arte? O sair de casa para ver uma boa peça, um filme, um show...
Sem dúvida. As pessoas voltaram a sentir necessidade de cultura. Têm se falado que nunca se leu tanto, nunca se consumiu tanta música, nunca se viu tanta série, e eu não acho que é porque as pessoas não têm o que fazer, pelo contrário, eu acho que essa pandemia humanizou muita gente.
As pessoas voltaram a entrar em contato, fundamentalmente, com a sua finitude. Tiveram medo de morrer, entraram em contato com a sua humanidade, se humanizaram. E não existe processo de humanização sem cultura, sem arte. É inerente ao ser humano o pensamento artístico, a inquietação, a angústia, a produção a partir da angústia, o pensar em novas maneiras de existência, de criar, produzir e consumir arte.
O fato é que a gente estava muito desumanizado, por conta da correria, por conta da loucura que virou a vida, por conta desse pensamento direita, esquerda, sim ou não, certo ou errado. Então um dos efeitos colaterais da pandemia foi essa 're-humanização', no sentido mais primário mesmo, da simples consciência da finitude. Da condição humana diante do universo. Da falta de controle sobre as coisas. Por isso sinto que as pessoas voltaram a procurar a arte, sinto que estão afim e finalmente cansadas do virtual, de ficar no celular, de rede sociais. As pessoas querem o encontro de novo, querem o teatro, o cinema. Acho que o teatro vai voltar com força total. A importância da aproximação com o público, do olho no olho. Sou bem otimista quanto a isso.
E você lançou, em meio ao isolamento, o documentário "Partida" em plataformas de streaming. A produção surge de uma vontade da atriz Georgette Fadel de se candidatar à Presidência da República. Como foi isso?
Em 2018, ano de eleição, o país estava absolutamente dividido, partido. Metade muito esperançosa, metade absolutamente desesperada. Estava ensaiando uma peça com a Georgette, e ela solta numa roda de conversa que deveria se candidatar à presidência. A gente não teve chance de ver o Bolsonaro ser confrontado num debate, publicamente, então todo mundo estava muito ansioso sem saber o que poderia acontecer.
E no desejo da Georgette já tinha, claro, um mistura de ficção e realidade. Por quê não? Porque não uma artista? Será que não é chegada a hora do Brasil ter uma artista no governo? Afinal, o Bolsonaro dizia que não entendia de nada de política e que ia se cercar de gente que entendesse de economia, educação... Então, por que não uma artista, alguém que pensasse o Brasil em um outro patamar de existência?
E como o ex-presidente uruguaio, Pepe Mujica, entra nessa história?
Por incrível que pareça, era um desejo antigo meu de tentar passar o réveillon com o Mujica. Sempre ouvi histórias de que ele morava num lugar isolado, numa fazenda, com aquele fusquinha. Tinha uma lenda de que ele recebia as pessoas. Enfim, tive essa ideia sei lá de onde e propus à Georgette, que topou. A ideia inicial era irmos, de ônibus, tentar passar o réveillon com o Mujica.
E isso era uma coisa simbólica: estar fora do Brasil bem no dia da posse do Bolsonaro, dia 1º de janeiro, e acompanhar a formalização da construção do pensamento político de uma artista que decide se candidatar à presidência enquanto está indo passar o final de ano ao lado de sua maior referência política afetiva viva, o Mujica. A ideia era essa. Mas a gente só tinha a partida, não é à toa que o filme tem esse nome. Não sabíamos o que ia acontecer pelo caminho.
Uma utopia de dois "viajantes" com um objetivo em comum.
Exatamente. "Partida" fala de um objetivo em comum. São duas pessoas, confinadas no mesmo ônibus, que podem brigar, discutir, mas que precisam de afeto e de consciência para chegar no mesmo lugar, ainda que discordando, senão o ônibus fica desgovernado, bate, e ninguém chega a lugar nenhum. A analogia é bem essa.
Estamos num tempo que não adianta só pensarmos, idealizarmos, precisamos ir atrás. Como é que vai ser pelo caminho? Não sabemos, mas o movimento importa. Não adianta só criar utopias, é preciso entender que quem vai decidir como será o mundo pós-pandemia somos nós. Está nas nossas mãos, então vamos. Que mundo você quer? É esse? Queremos a mesma coisa? É o mundo que todo mundo quer? Então vamos lá, vamos em frente. Essa consciência e movimento é o mais importante.
Recentemente vimos uma onda de protestos, pelo mundo, que não só busca uma sociedade melhor, como luta pelo fim do racismo. Aqui no Brasil muita gente saiu às ruas, muitos famosos se posicionaram. Como você esse movimento?
Eu me sinto na obrigação de me juntar a essa luta, como em outras. A gente está num momento muito delicado, acho que os brancos, nessa luta racial, têm que se posicionar. A gente tem que ouvir, tem muita coisa para aprender. E tem que correr atrás.
Conversei a atriz Nilcea Vicente sobre ocupar minhas redes sociais, e ela topou. Toda semana ela trata de um tema com um convidado. E ela está trazendo muita gente bacana, que não é conhecida pela grande mídia. Isso é muito legal, provoca reflexões. Agora, não adianta só ceder espaço.
Esse movimento em que as pessoas cederam suas redes sociais foi bonito, num primeiro momento, mas só isso não basta. É preciso que eu, como branco, passe a estimular as pessoas a visitarem a página da Nilcea, por exemplo, e de outros artistas negros também. É preciso dar o protagonismo a eles. Não adianta só abrir espaço.
Tem muita gente que sendo criticada por achar que só ceder o espaço, ou postar uma hashtag, é o bastante.
Sim, total. Cada um usa as redes sociais como quer, mas temos que ter em mente que só isso não é suficiente. É uma batalha. É uma vigília constante. Eu, como branco, estou num lugar de correr atrás do prejuízo. E nenhuma pessoa tem obrigação, paciência e saco, para ficar ensinando toda hora. E com toda razão. Eles estão falando sobre racismo há muito tempo.
Então, não basta só você se declarar antirracista, a gente tem que se posicionar. A gente tem que estar muito atento ao racismo estrutural em nossos círculos profissionais, afetivos, sociais, mas sempre que não tem um negro nesses espaços, temos que nos perguntar por quê? O que está acontecendo?
É um movimento muito forte e muito bonito. Um movimento sem volta, assim espero. Estamos caminhando, mas precisamos reconhecer nossa parcela de responsabilidade sobre o racismo estrutural. Precisamos lutar para que essa injustiça finalmente acabe.
É esse mundo mais justo, solidário, que você imagina que sua neta possa crescer?
Sem dúvida. Não tem riqueza maior para mim do que a possibilidade da minha neta viver num mundo em que ela possa brincar num parque sem achar que as piores coisas possíveis podem acontecer. Estamos perdendo liberdades básicas, né? Então, não posso desejar para a minha neta um mundo em que ela não possa caminhar tranquilamente pela rua a hora que ela quiser, que ela não possa pensar o que ela quiser, experimentar o que ela quiser, desde que não faça mal para ninguém.
Nós somos responsáveis pela construção desse mundo, quando você é pai, você é mãe, isso se redimensiona, obviamente. Mas também é importante deixar que eles nos ensinem. Meu filho me ensina muito. Ele nunca quis ter carro, nunca quis ter vídeo game... Ele quer plantar a própria comida, quer andar de transporte público... Precisamos deixar que essa geração nos ensine, porque ela já vem pronta para algumas questões, eles já nasceram com a preocupação com o meio ambiente, nasceram com uma lógica mais horizontal e se relacionam e enxergam o mundo de uma maneira diferente.
É preciso deixar que eles nos ensinem o que a gente deveria ter feito há muito tempo com o nosso planeta e não fez.
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