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Tijolo por tijolo, mulheres ajudam outras a erguer casas e autoestima

Cenir e Chay trabalham em obra em Belo Horizonte - Divulgação/ Arquitetura na Periferia
Cenir e Chay trabalham em obra em Belo Horizonte Imagem: Divulgação/ Arquitetura na Periferia

Lígia Nogueira

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

28/07/2020 19h23

Quando foi contemplada com um lote na ocupação Paulo Freire, na região do Barreiro, em Belo Horizonte, há três anos, Chay Miguel, 31, se deparou com a necessidade de contratar um pedreiro para construir sua casa. Sozinha com o filho Yan, hoje com 11 anos, ela encontrou uma pessoa que ergueu um cômodo, que era o que o dinheiro permitia, mas ainda faltava muito para que o lar estivesse pronto.

A partir do contato com um grupo de moradoras da região, conheceu o projeto Arquitetura na Periferia, que capacita mulheres para conduzir reformas em suas casas. "As aulas eram muito especiais, era cada dia uma novidade. Pude aprender da teoria à prática", conta Chay, que usou os conhecimentos adquiridos para construir um esgoto e um piso novo no banheiro. Ela também fez a parte elétrica e o reboco de parte da obra.

Nunca imaginei fazer transformações que foram além do material, do concreto. Foram coisas de fora para dentro. O conhecimento trouxe um sentimento de que eu era capaz. Vi que eu conseguia ir além do que eu imaginava, que eu poderia ter autonomia.

Chay Miguel, modelo fotográfico

A cerâmica da cozinha, que ela mesma assentou, é resultado de uma oficina com Cenir Aparecida Silva, 52 anos, mestre de obras do projeto e moradora do bairro Urucuia, no Barreiro de Cima, em BH.

Arquitetura na Periferia - Divulgação/ Arquitetura na Periferia - Divulgação/ Arquitetura na Periferia
Imagem: Divulgação/ Arquitetura na Periferia
Há alguns anos, Cenir também fez a própria obra. Ela recebia assessoria técnica em regime de mutirão nos finais de semana, mas decidiu se aprimorar. Fez curso de marcenaria estrutural com uma arquiteta e professora da PUC, aprendeu elétrica, pintura, até se tornar mestre de obras pela escola de engenharia da UFMG.

"Não foi uma caminhada fácil, porque tenho quatro filhos e sempre cuidei deles sozinha. Minha vida ficou melhor depois que comecei a trabalhar em construção civil. Antes trabalhava com vendas e sempre levava muito prejuízo. Hoje estou na área há 22 anos e cada dia ainda aprendo mais", diz Cenir.

Nessas oficinas que a gente faz eu vejo nas meninas a força que eu tinha antigamente, a vontade de aprender, aquele desejo de melhorar. Isso me faz muito feliz, me deixa bem comigo mesma. Ver essa força que elas têm é muito importante para mim, consigo me ver na época em que comecei.

Cenir Aparecida Silva, mestre de obras

Acesso a direitos básicos

O projeto Arquitetura na Periferia nasceu da tese de mestrado da arquiteta Carina Guedes na UFMG em 2013. "Queria entender por que a arquitetura fica restrita às grandes obras e às classes privilegiadas, enquanto tem tanta gente construindo o tempo todo. A gente anda pela cidade e vê as periferias crescendo, sem acesso a esse tipo de serviço."

Na ocasião ela pôde investigar o assunto com o apoio do grupo de pesquisas MOM (Morar de Outras Maneiras), que já atuava no atendimento de demandas populares. Carina, então, desenvolveu um método de assessoria técnica para melhoria da moradia a pequenos grupos de mulheres.

Durante o mestrado ela conseguiu testar esse método no primeiro grupo de mulheres na ocupação Dandara, região norte de Belo Horizonte. "O processo foi pautado pelo compartilhamento da informação, em vez de simplesmente focar no produto, que é o projeto arquitetônico", diz. "Ele foca no aprendizado, em aprender a planejar a reforma. Com isso você aprende a planejar várias outras coisas, e a sua vida toda pode ser impactada de maneira positiva —na autoestima, principalmente."

Hoje o grupo atua de forma contínua com a ajuda de doações mensais em três comunidades da capital mineira, Eliana Silva, Paulo Freire e Dandara. A cada ano elas formam pelo menos um grupo de mulheres em cada uma dessas comunidades.

Arquitetura na Periferia - Divulgação/ Arquitetura na Periferia - Divulgação/ Arquitetura na Periferia
Imagem: Divulgação/ Arquitetura na Periferia
Com a pandemia, as atividades presenciais foram suspensas em março, mas o projeto continua. As obras em andamento recebem assessoria de forma remota, enquanto as aulas presenciais deram lugar aos encontros online. O cenário causado pela covid-19 fez com que o grupo abrisse outras frentes, como, por exemplo, a arrecadação de recursos para cestas básicas e kits de higiene, além de uma equipe que presta apoio psicológico às mulheres desde o ano passado.

Para a arquiteta, a casa vai muito além do espaço físico. "Principalmente para as mulheres da periferia, ela significa também o acesso a direitos básicos. Você precisa de um endereço para conseguir colocar o filho na creche, acessar a saúde. Com a pandemia isso ficou mais evidente, ao ver as mulheres trabalhando em suas casas para torná-las melhores. Elas saem de um lugar em que são dependentes de alguém para fazer qualquer mudança para um lugar de 'eu posso fazer e a qualidade de vida da minha família vai melhorar'."