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Como Beyonce se tornou fundamental para o debate sobre identidade negra

Beyoncé em fotografia de "Black is King" - Divulgação
Beyoncé em fotografia de "Black is King" Imagem: Divulgação

Paula Rodrigues

De Ecoa, em São Paulo

05/08/2020 16h36

Em um vídeo postado no dia 2 de agosto no Twitter, uma menina preta chora. Chora muito. Repete algumas vezes, em inglês, a frase: "é tão bonito". Cerca de 180 mil visualizações depois, a gravação foi parar em vários perfis pelas redes sociais. Todos replicando a cena da criança tão emocionada que só conseguia dizer que tudo era muito bonito. Na descrição da postagem, a tia da garota explica o motivo do choro: "A reação da minha sobrinha para Black Is King."

"Black Is King"é o nome do novo filme da Disney escrito, produzido e dirigido pela cantora norte-americana Beyoncé. O choro da menina foi só uma das muitas reações que a cantora recebeu desde o lançamento no último dia 30. Conversando com a filósofa Katiúscia Ribeiro, ela rememora o trabalho da pesquisadora e socióloga nigeriana Oyeronke Oyewumi que define bem o que a garotinha do vídeo sentiu ao assistir o filme: cosmo sensação.

"A partir de um princípio de uma filosofia a africana que tem uma relação direta com o sentir, quando de você olha a Beyoncé, acontece um atravessamento do seu sentido, e isso acaba por despertar gatilhos ancestrais. Então, muito mais do que trazer uma cosmovisão (forma de entender o mundo e se ver nele), ela desperta essa cosmo percepção, uma sensação de um espírito africano que não se perdeu, que não se findou, que faz parte do ser negro na África do continente e na África global, por mais que a população negra tenha sido dispersada com a colonização", diz Katiúscia.

Para ela, o filme não é apenas uma obra musical, mas um presente para a comunidade negra diáspora, principalmente por apresentar essa busca do entendimento do ser negro e das raízes a partir de um novo horizonte, marcado não pelas dores do racismo cotidiano, mas pelas glórias, beleza e riqueza da cultura e filosofia africana.

Fato é que, desde o fim de semana, o filme tem conseguido não só apresentar elementos importantes como também levantar nas redes sociais o debate sobre cultura, espiritualidade e representatividade negra. Seja ao concordar ou fazer oposição à visão que a artista apresenta no filme.

Referências culturais e busca de identidade

Nos primeiros minutos, entre uma música e outra, a narração da cantora dá pistas do que assistiremos na quase uma hora e meia de produção. "A História é o seu futuro. Um dia você vai se encontrar de volta onde começou, mas mais forte", diz. A frase funciona quase como uma prévia do que é afrofuturismo, presente em todo o filme. Esse movimento social, político e cultural visa se reconectar com a ancestralidade africana para tentar imaginar novos modelos de futuro para o povo preto.

"Ela está falando o tempo todo em voltar. Na medida em que a Beyoncé pergunta 'quem é você?' e te convida na [música] 'Black Parade' a voltar ao Sul, ela te diz que você tem uma identidade, uma matriz cultural africana que precisa ser resgatada, porque é a partir desse resgate que você pode compreender seu lugar no mundo", diz Katiúscia.

Seja por meio das roupas, dos adereços, dos cenários ou das letras da música, o filme o tempo todo te relembra das riquezas e belezas da população negra. "Nós éramos belos antes deles saberem o que era beleza", narra a cantora. Para as intelectuais ouvidas por Ecoa, o papel principal da obra é mostrar essa busca do que é ser negro para além do que a colonização definiu.

Historicamente, a população negra sempre foi vista a partir da violência da colonização. Como se nossa história começasse a partir do século 15, como se a população negra tivesse nascido nos porões dos navios. Quando a Beyoncé apresenta outras narrativas sobre divindade, glórias, qualidade, beleza, ela ressignifica o olhar de nós mesmos sobre essas questões. Ela apresenta uma outra possibilidade de nos reconhecermos. É dizer que nós somos muito mais do que fizeram de nós.

Katiúscia Ribeiro, filósofa

Katiúscia explica que inclusive a tão criticada "estampa de oncinha" usada no filme tem motivo para estar lá. Sacerdotes antigos do reino de Kush, onde hoje fica a Etiópia, e do Kemet, nome antigo do que hoje conhecemos por Egito, utilizavam pele de leopardo porque para eles era a representação das estrelas e a totalidade do Universo.

"Esse é um ponto importante de ser falado. Ela faz uma releitura de elementos tradicionais. A Beyoncé vem há um tempo se aproximando de uma narrativa de buscar essas raízes", diz Daniela Gomes, professora visitante da Trinity College e doutora em estudos africanos e da diáspora africana.

Essa busca própria da artista, quando traduzida em letras de música e imagens que contam histórias para que outras pessoas possam consumir, possui o poder de reacender debates antigos e levantar outros questionamentos para o grande público. Nesse caso, especialmente sobre a população negra da diáspora.

"Artistas despertam a curiosidade no grande público. Ainda mais quando se tem o nível de influência da Beyoncé. Desde [a música] 'Formation', ela vem causando essa vontade nas pessoas de quererem entender o que ela está falando. A partir do momento que ela começa a citar certas coisas na música dela que até então podem ser desconhecidas do grande público, as pessoas vão querer saber mais sobre aquilo, vão pesquisar para entender do que se trata", diz Daniela Gomes.

Obra promoveu corrida por conhecimento

Agora, com "Black Is King", a professora afirma que uma das grandes especulações que o filme levantou foi sobre qual seria a cosmologia africana à qual a cantora se refere no recorrer da obra. De qual país vem cada referência usada tantos nas letras, quantos nas roupas e cenários? A imprensa internacional, inclusive, entrou nessa onda e, mais do que resenhas sobre o filme, produziram textos detalhando alguns pontos que podem não ser familiares para o público de lá.

A norte-americana Vox, por exemplo, trouxe na sexta-feira (31) um texto explicando quem era Oxum. Isso porque durante uma das músicas, Beyoncé refere-se a si como essa orixá. Em outro momento, a narração volta e ela diz que "os Orixás seguram sua mão durante essa jornada que começou antes de você nascer".

"O sincretismo religioso nos Estados Unidos é muito menor que no Brasil", aponta Daniela. Vale lembrar que a quantidade de africanos forçados a sair de seus países de origem com destino à escravidão nos Estados Unidos foi muito menor se comparado aos números brasileiros.

Segundo o Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, para lá foram levados forçosamente cerca de 389 mil pessoas. No Brasil, quase 4,9 milhões. Como a quantidade de elementos tradicionais das culturas, filosofias, políticas e espiritualidade africanas foram menos propagadas por lá, o filme desempenha o papel de apresentar determinados pontos até então desconhecidos para este público.

"A religião cristã negra nos Estados Unidos é muito forte. Era a única religião possível de ser praticada durante a escravidão por negros escravizados. Óbvio que tinha elementos de matriz africana, mas com sincretismo menor. Lá não se tem uma prática de matriz africana como se tem no Brasil. Exceto em práticas locais, como na Louisiana, por exemplo. Assim como todos nós, negros da diáspora, a Beyoncé também está tentando se encontrar e se entender nesse mundo, buscando as referências em África que tiraram da gente", afirma Daniela.

Beyonce não pode ser um fim, mas o começo

O filme, porém, não é um documentário. Não tem a proposta de mostrar uma visão definitiva de todo o continente africano. É a visão, uma leitura de Beyoncé em construção coletiva com diversos outros artistas africanos e americanos em diáspora. Lord Afrixana, Tekno, Yemi Alade, Oumou Sangaré e Shatta Wale são alguns dos nomes por trás das músicas, a maioria vem de Gana e Nigéria.

Além de contribuir com as letras e os beats, essa mistura de artistas em diferentes países ajuda a trazer para cena o debate sobre outro movimento: o panafricanismo, que rega a união de nações africanas para criar um movimento contra o racismo e desigualdades sociais no continente. A ideia fica mais explícita quando uma bandeira dos Estados Unidos aparece nas cores da ideologia: vermelho, verde e preto. Ao redor dela, outras bandeiras de países africanos são erguidas no ar por homens negros.

"Ela traz ideais culturais, signos que circulam e projetam nossas identidades. Esse filme é uma ferramenta para levantar debates. O ativismo está ali presente, mas não é uma análise profunda. Nem tem pretensão de ser. Tudo que a gente faz é político, mas eu digo que a gente pode fazer de obras como a da Beyoncé um manifesto a serviço da política", diz Rosane Borges, jornalista e pós-doutora em ciência da comunicação.

Junto com o pesquisador Alisson Prando, Rosane desenvolveu um curso chamado "Politizando Beyoncé", em que discute a conexão não só da cantora, mas da cultura pop no geral com questões raciais, de gênero e sexualidade. Para ela, obras como essa tem horizontes, mas também tem limites, especialmente por apresentar elementos ancestrais de uma cultura pela lógica do consumo.

"Considerando tudo isso, ela ainda é fundamental para o debate. A Beyoncé é muito necessária, a gente precisa dela. Especialmente por questões de representatividade", completa. O mesmo defende a professora Daniela quando diz que não podemos esquecer que a música pop é para consumo. Porém é inegável a influência da cantora e do filme para levar debates raciais como esse a diversas camadas da sociedade.

O que a gente tem que fazer agora como consumidor dessa arte é não deixar terminar esse debate sobre cultura negra e africana aí. A gente não pode deixar a Beyoncé ser o final da narrativa, ela tem que ser o começo, o estímulo para que ocorram debates mais profundos sobre tudo isso.

Daniela Gomes, professora visitante da Trinity College e doutora em estudos africanos e da diáspora africana