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Machado de Assis não seria o que é se Brasil o visse como negro, diz editor

O historiador paulistano Fernando Baldraia, novo editor de diversidade da Companhia das Letras - Divulgação
O historiador paulistano Fernando Baldraia, novo editor de diversidade da Companhia das Letras Imagem: Divulgação

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

05/08/2020 04h00

"Se o Brasil tivesse reconhecido Machado de Assis como autor negro, seguramente a ele não teria sido permitido ser fundador da Academia Brasileira de Letras", reflete Fernando Baldraia. O historiador paulistano de 42 anos acaba de ser contratado pela gigante editorial brasileira Companhia das Letras como responsável por promover um catálogo mais diverso no Grupo. E tem, pessoalmente, uma trajetória que cruza a literatura a partir de caminhos quem não vêm de cânones ou de estéticas hegemônicas. "E se eu tivesse reconhecido Machado como negro na época da escola, com certeza não teria começado a perceber que determinadas estruturas deveriam ser mudadas só aos 19 anos", diz ele.

A "chavinha" literária girou a mente de Baldraia não com um livro, mas com o lançamento de "Sobrevivendo no Inferno", álbum do Racionais Mc's, e da sequência "Nada como um dia após outro dia", cujo show de lançamento ele orgulha-se de ter ido. (Em 2018, a Companhia das Letras editou as letras de Sobrevivendo no Inferno em um livro de poesias).

"Não consigo ver minha existência como intelectual sem a presença de um cara como o Mano Brown. Eu não sabia o que era literatura. Lia muito, mas foi com o hip-hop que vi que algo nesse 'Brasilzão' não estava certo", diz.

Baldraia nasceu em São Miguel Paulista, extremo leste de São Paulo, morou no Grajaú, na zona sul, e viveu a maior parte da vida em Osasco. Formou-se em história pela Universidade de São Paulo (USP) em 2003, foi professor em cursos comunitários e inaugurou uma biblioteca na periferia de Osasco (SP). Foi para a Europa devido a seu envolvimento com a capoeira e, por lá, estudou os aspectos sociológicos e argumentativos contrários e favoráveis às leis de cotas raciais no mestrado na Universidade Livre de Berlim.

No doutorado, defendeu uma tese sobre as semelhanças históricas entre negros das américas, África e Europa a partir da análise de "O atlântico negro: modernidade e dupla consciência", do britânico Paul Gilroy. No pós-doutorado, pesquisou a interseccionalidade do racismo a partir de teóricos feministas, indígenas e queers.

Após dez anos na Alemanha, conseguiu uma bolsa para estudar desigualdade no Brasil.

O grupo contratou Baldraia justamente para tratar de problemas estruturais do Brasil. Novos e consagrados autores negros, indígenas e LGBTQIA+ serão promovidos. Nos planos estão um comitê interno para discutir racismo e um censo racial de funcionários e autores. Cerca de 100 projetos já estão em andamento, segundo a empresa.

Em relação a contratações, diz Baldraia, a ideia é que a entrada de pessoas negras, indígenas ou LGBTQIA+ não fique restrita a estagiários. "A gente sabe que as iniciativas não podem parar no patamar mínimo", afirma. Além dele, a empresária e apresentadora Ana Paula Xongani e o escritor Samuel Gomes são editores convidados do selo Paralela.

O novo editor não ficará responsável por uma só área da empresa, nem terá um selo próprio que divide os autores negros do restante do catálogo. Segundo o historiador, o cargo envolve um trabalho com todos os selos da casa.

Fundada em 1986 por Luiz Schwarcz e Lilia Moritz Schwarcz, a então editora Companhia das Letras foi abocanhando empresas como a Objetiva, Alfaguara, Paralela e Zahar até estabelecer-se como um grupo editorial, em 2015. Ao todo, são 16 selos com temáticas e títulos que vão dos populares aos clássicos, dos infantis à gastronomia.

Em 2011, o grupo editorial britânico Penguin fez a compra de 45% da Companhia das Letras, aumentando o poderio da empresa no Brasil. Dois anos depois, a Penguin também se fundiu com a alemã Random House, formando assim o maior grupo editorial do mundo.

Resgate para quem?

Autora de "Quarto de despejo: diário de uma favelada", Carolina Maria de Jesus (1914-1977) passou nos últimos anos pelo que costuma-se chamar, em resenhas literárias, de "resgate". A Companhia das Letras irá publicá-la como parte do novo projeto.

Precisa mudar esse termo 'resgate'. Em 2004, quando instalamos uma biblioteca na periferia de Osasco, havia uma foto da Carolina Maria de Jesus na parede. Ela foi mantida viva e lida por um bocado de gente. Isso tem de ficar claro: não é porque a Companhia das Letras, a Folha ou a Globo estão falando de algumas coisas que elas passaram a existir. Ao contrário, a gente a manteve viva o tempo todo

Fernando Baldraia, doutor em História pela Universidade Livre de Berlim e editor na Companhia das Letras

Antes dos Racionais, Baldraia participava de grupos estudantis com retórica sindicalista em movimentos estudantis marxistas, um papo difícil de entender na quebrada, e que costumava ignorar a violência policial. "Falavam que era só eliminar a desigualdade que você eliminava o racismo. É uma puta de uma falácia. Você tem sociedades relativamente igualitárias que continuam extremamente racistas", diz.

Um desafio do cargo será encontrar novos autores e levar mais livros para as periferias brasileiras. "A gente precisa acabar com a ideia que as pessoas não gostam de ler. O pessoal fala mesmo: favelado, comunidade carente não lê. É mentira. A situação é como a de não ensinar, não dar a oportunidade para aprender e ainda dizer que a pessoa, na verdade, não gosta", diz.

"Lembro de apresentar uma palestra na Alemanha e dizer que a escravidão brasileira era um regime de terror. Uma mina branca levantou e disse que não era bem assim, uma coisa meio Gilberto Freyre da vida. Se hoje, com racismo na escola e repressão policial, já há um regime de terror psicológico, cê imagina na escravidão?", relembra. "Eu era o único preto. Você olha para o lado e só tem branco. Faz o quê? Senta e chora."

Para Baldraia, a sociedade hoje reflete mais sobre racismo e ataques contra as populações indígenas, mulheres e LGBTQIA+. "As pessoas brancas, em posição de privilégio, estão percebendo que sua posição dá condição de fazer isso com um grau de efetividade grande, e [começando] a tomar partido diante deste tipo de injustiça", diz.

Mas por que o movimento literário e acadêmico, cujo posto baseia-se na reflexão sobre a existência humana, demorou tanto para desenvolver uma agenda antirracista? Para Baldraia, a resposta tem a ver com o fato de que não adianta análise e observação sem a presença de pessoas negras em maior número nesses cenários.

"Quem poderia ter escrito um livro como o 'Becos da Memória' (2006), da Conceição Evaristo? Só o conhecimento lógico, racional e objetivo do real não basta. O antirracismo te dá um conhecimento narrativo, poético, visual. Ele compõe um universo que faz as pessoas entenderem o que é racismo estrutural", diz. "A partir daí, os intelectuais têm de honrar o termo: porque tem que ser muito burro para não entender."