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"Caminhar para criar uma revolução" é mote do movimento negro GirlTrek

Mulheres durante caminhada promovida pelo GirlTrek em Estes Park, Colorado - GirlTrek
Mulheres durante caminhada promovida pelo GirlTrek em Estes Park, Colorado Imagem: GirlTrek

Fernanda Ezabella

Colaboração para Ecoa, de Los Angeles (EUA)

07/08/2020 04h00

Dez anos atrás, a norte-americana Vanessa Garrison criou com sua melhor amiga o movimento GirlTrek, hoje a maior organização sem fins lucrativos voltada à saúde de mulheres e meninas negras nos Estados Unidos, grupo que apresenta os piores índices de saúde no país.

Com a pandemia, os planos de um festival em junho foram adaptados para um fundo emergencial, uma linha telefônica de apoio 24h e um "bootcamp" no formato de podcast gravado ao vivo, focado em grandes líderes negras e movimentos de resistência.

O GirlTrek nunca foi uma organização de fitness. Nunca pedimos às mulheres para perder peso ou caber no seu jeans skinny. Nosso chamado de ação sempre foi de que merecemos cuidar de nós mesmas. E quando dedicamos tempo a isso, temos uma revolução. Para as mulheres que não sabem por onde começar, pedimos apenas que comecem com uma caminhada.

Vanessa Garrison, cofundadora da GirlTrek

O objetivo da organização, que reúne mais de 800 mil integrantes, é inspirar o primeiro passo em direção a uma vida mais saudável, como "um protesto radical de autocuidado". A tática usada vem da tradição de suas ancestrais e é emblemática das lutas pela igualdade civil.

Vanessa Garrison, cofundadora do GirlTrek, durante caminhada promovida pelo grupo - Jati Lindsay/GirlTrek - Jati Lindsay/GirlTrek
A cofundadora do GirlTrek, Vanessa Garrison
Imagem: Jati Lindsay/GirlTrek

"Caminhar sempre foi uma ferramenta de mudança social, especialmente para os negros", disse Garrison a Ecoa. Ela lembra dos boicotes aos ônibus de Montgomery, no Alabama, em 1955, das marchas pelo direito ao voto em 1965 e também da heroína Harriet Tubman (1822-1913), que andou por dias para escapar da escravidão e depois voltou para libertar outros escravos.

"Pedimos às mulheres que primeiro fiquem saudáveis e depois busquem seus amigos e famílias para que fiquem saudáveis também", explicou Garrison numa conversa via Zoom. "Precisamos tomar as linhas de frente e organizar nossas comunidades para que o mundo pare de nos matar."

Na prática, a GirlTrek funciona como uma rede de grupos locais de caminhadas coletivas diárias de 30 minutos. Mas acaba sendo muito mais do que isso: forma círculos de apoio. "Entendemos que caminhar é meditativo", continuou a ativista, que conheceu a amiga e cofundadora da GirlTrek, T. Morgan Dixon, quando as duas eram estudantes em Los Angeles.

"Caminhar é uma herança cultural que permitiu às mulheres desacelerar e reconsiderar o ritmo da vida para reivindicar tempo para si mesmas, num mundo e numa economia que dizem que não somos dignas disso."

Mulheres durante caminha promovida pelo GirlTrek em Estes Park, Colorado - GirlTrek - GirlTrek
Imagem: GirlTrek

Luta contra números assustadores

O grupo reúne diversos dados para mostrar a situação precária da mulher negra nos EUA, na esteira de um cotidiano de racismo e opressão sistêmicos. Garrison diz ser a própria estatística em pessoa: "Calculei a expectativa média de vida das mulheres na minha família mais próxima. Era 66 anos", disse no TED Talk de 2017, visto mais de 1,3 milhão de vezes.

Mulheres negras aparecem na pior posição na maioria dos indicadores de saúde do país. Em 2014, 82% estavam acima do peso, e 53% tinham obesidade mórbida, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês).

A rotina de exercícios pode trazer anos de vida de volta e evitar doenças cardíacas, principal responsável pela morte diária de 137 mulheres negras, número mais alto que óbitos por violência e cigarro juntos, segundo dados da GirlTrek.

Em 2020, o plano era finalizar uma turnê por dezenas de cidades para falar sobre saúde e treinar líderes comunitárias de caminhadas coletivas. O encerramento seria em junho, num festival de três dias e numa caminhada pelo trecho histórico de 87 km entre Selma e Montgomery, onde milhares marcharam pelo direito ao voto dos afro-americanos em 1965.

Com a chegada da pandemia, mudaram de rumo. O dinheiro do festival foi realocado para um fundo emergencial de US$ 100 mil (R$ 528 mil) para ajudar suas integrantes, e as voluntárias que ajudariam na organização montaram uma linha telefônica de apoio que funciona até hoje. Em 24 horas após a criação do fundo, os pedidos de ajuda somavam mais de US$ 500 mil (R$ 2,6 mi).

A escritora Toni Morrison - Divulgação/IMDb - Divulgação/IMDb
A escritora Toni Morrison
Imagem: Divulgação/IMDb

Podcast sobre líderes negras

Com a suspensão das caminhadas coletivas, a equipe da GirlTrek bolou uma forma de manter a comunidade unida e se exercitando, ainda que à distância, por meio de um "bootcamp" via podcast. "Não estávamos mexendo nossos corpos, estávamos realmente estressadas, deprimidas, fracas. Precisamos nos conectar, é nossa maneira de instigar as pessoas", disse Garrison.

Após o sucesso da primeira, a segunda temporada do podcast #BlackHistoryBootCamp (bootcamp da história negra) estreou na segunda-feira (3). O grupo afirma que foram mais de 300 mil downloads durante 21 dias de junho.

Os episódios são gravados ao vivo, enquanto Garrison e Dixon caminham e conversam por telefone. A comunidade GirlTrek é convidada a ligar ao mesmo tempo para ouvir a conversa, enquanto faz sua própria caminhada sozinha, num lugar seguro e de máscara.

Mais tarde, o episódio é liberado nas plataformas de podcast e no site oficial do bootcamp, onde qualquer um pode se registrar para participar do telefonema e receber o material de apoio por e-mail.

Cada episódio de 30 e poucos minutos mistura a informalidade do papo de duas amigas de longa data com dicas de autoajuda e tom educacional, focado na história de grandes líderes e movimentos de resistência.

"Não queremos apenas que as pessoas escutem. Queremos que caminhem, isto é um bootcamp de verdade", avisou Garrison. "Com as tecnologias de hoje, podemos virar o que chamo de ativista de poltrona. Mas a transformação acontece quando você entra no seu próprio estado meditativo, um pé após o outro."

Na primeira temporada, as duas falaram sobre as escritoras Octavia Butler (1947-2006) e Toni Morrison (1931-2019), a ativista Ella Baker (1903-1986), a jornalista e educadora Ida b. Wells (1862-1931) e outras 17 mulheres. "Queríamos estudar as estratégias e histórias de sobrevivência de diferentes mulheres negras", disse.

Na segunda temporada, celebram grandes atos de resistência negra, como a fundação do Partido dos Panteras Negras e a história de Tubman, a ex-escrava que virou guerrilheira e espiã, libertando centenas de escravos por um trajeto conhecido como Underground Railroad. Garrison e Dixon conhecem bem sua vida e refizeram o caminho num programa especial da GirlTrek em 2018, andando 160 km em cinco dias.

"Queremos usar o bootcamp para nos perguntar: o que podemos aprender desses momentos para que possamos aplicá-los ao movimento que está acontecendo hoje?", disse Garrison.

Brasil e Michelle Obama

Garrison é formada em artes pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Quando estudante, trabalhava num banco de investimento, onde conheceu Dixon, hoje com mestrado em política educacional.

"Éramos duas amigas aprendendo a navegar a vida, apenas tentando sair da pobreza e adquirir recursos suficientes para ajudar pessoas que amamos", disse Garrison. Em dez anos de amizade, perceberam que haviam aprendido algumas coisas que valiam a pena passar adiante. Nascia então a GirlTrek.

Hoje, o movimento está presente também no Reino Unido, em seis países da África e outras ilhas do Caribe. A dupla adoraria ver o movimento chegar ao Brasil, embora ainda não tenha planos de treinamento ou tradução do material para o português.

"Convidamos qualquer mulher em qualquer lugar do mundo a começar a caminhar e a se organizar usando o que temos em nosso site", disse Garrison, que visitou o Rio de Janeiro uma vez, mas a viagem acabou comprometida quando a companhia aérea perdeu suas malas. "O bootcamp é uma boa forma de treinamento."

Garrison fala da capital Washington (EUA), enquanto Dixon fala da capital Acra (Gana), para onde se mudou recentemente. Num dos episódios, Garrison passa em frente à casa dos Obama e faz uma brincadeira para que Michelle Obama apareça para caminhar também. Em 2014, quando o projeto começava a ganhar força, a dupla foi convidada à Casa Branca pela então primeira-dama, que virou fã do movimento.

"Ela mora perto do meu bairro. Tenho fé que até o final desta temporada vamos conseguir trazê-la para uma de nossas caminhadas", disse Garrison, que divide com o público do podcast histórias bastante pessoais, como o divórcio que enfrenta no meio da pandemia.

"O que está me mantendo sã é achar 30 minutos para caminhar na maioria dos dias. Estou literalmente me mexendo para fazer passar esse trauma."

Muito além de sair andando

A coach de bem-estar Lee Scottlorde, 32, se juntou à GirlTrek em 2015, na Filadélfia. Ela se esforça para andar diariamente em seu bairro por ao menos 30 minutos e, quando tem tempo, bate perna por 8 km, quase uma hora e meia.

Lee Scottlorde é uma das mulheres que acompanha o GirlTrek - Christian Jones - Christian Jones
Lee Scottlorde é uma das mulheres que acompanha o GirlTrek
Imagem: Christian Jones

Seu lugar favorito é uma trilha no parque East Fairmount Park, mas ela tenta manter a rotina simples, perto de casa, para aumentar a chance de ser consistente. "Às vezes, nem coloco tênis ou roupa de ginástica. Apenas pego minha chave, uma água e vou andar para limpar a mente", disse a Ecoa.

Também na Filadélfia, a colega e artista Iresha Picot já perdeu 58 quilos desde que se juntou ao grupo quatro anos atrás. Agora ela anda sozinha, mas ligada no podcast ao vivo. "Com uma hashtag me conecto com mulheres que estão fazendo o mesmo por todo o país. Não precisamos fazer isso sozinhas", disse Picot ao site da NPR.

Mas para Scottlorde, GirlTrek é muito além das caminhadas. Em janeiro, quando quase cometeu suicídio por conta de sua depressão crônica, lideranças locais e nacionais do grupo surgiram para lhe fazer companhia e assegurar que ela conseguisse a ajuda médica necessária.

"A GirlTrek me ofereceu o apoio comunitário, e é isso que nós precisamos para sobreviver e prosperar", disse Scottlorde. "Muitas organizações de saúde pública não entendem que as doenças das mulheres negras estão enraizadas no racismo e opressão sistêmicos. Por isso, suas intervenções geralmente não são bem-sucedidas ou culturalmente apropriadas."