Topo

Estudo do Brasil pioneiro com pele de tilápia pode ajudar vítimas do Líbano

Pele de tilápia aplicada sobre queimadura para diminuir dor e acelerar cicatrização - Divulgação
Pele de tilápia aplicada sobre queimadura para diminuir dor e acelerar cicatrização Imagem: Divulgação

Diana Carvalho

De Ecoa, em São Paulo

07/08/2020 04h00

Pesquisadores da Universidade Federal do Ceará se mobilizaram para ajudar as vítimas da tragédia que deixou 4 mil feridos e mais 100 mortos após uma explosão no porto de Beirute, no Líbano. Os cientistas, que desenvolvem um estudo inédito sobre uso de pele de tilápia no tratamento de queimaduras, ofereceram a doação de mais de 40 mil cm² de pele de seu estoque para o tratamento dos libaneses. A doação, no entanto, depende de tramites legais entre os dois países para a liberação do envio.

Há seis anos, o cirurgião plástico e presidente do Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ) Edmar Maciel desenvolve técnicas de aplicação da pele do peixe em pacientes com lesões. A pele de tilápia age como um curativo para queimaduras de 2º e 3º grau e o seu uso acelera o processo de cicatrização além de diminuir a dor do paciente. Por enquanto, mais de 350 pessoas já foram beneficiadas com o procedimento no Brasil.

Quando um paciente sofre uma queimadura, é aplicada uma pomada na área atingida, que é coberta por gaze. Porém, esse curativo precisa ser refeito todos os dias para evitar infecções. "Um curativo que precisa ser trocado diariamente provoca dores no paciente e muitas vezes é necessário o uso de anestésico, o que gera um custo ainda maior ao tratamento", explica o cirurgião.

Com a tilápia, esse processo não seria necessário, já que o seu colágeno facilita o processo de cicatrização com uma aderência completa à queimadura. Outra vantagem é que a pele de tilápia é facilmente extraída e o peixe é o principal pescado cultivado no Brasil. A pele, que geralmente é descartada na cadeia produtiva, pode ter nova utilidade.

Em entrevista a Ecoa, o pesquisador conta como surgiu a ideia de doação das peles às vítimas de Beirute e explica o por quê do procedimento ainda não estar disponível para o uso em hospitais pelo Brasil.

Ecoa: Como surgiu a ideia de doar peles de tilápia para ajudar no tratamento das vítimas da explosão no Líbano? E como está o processo para liberação da doação?

Edmar Maciel: Devido a essa tragédia, fomos procurados por diversas pessoas, entre colegas médicos e cirurgiões plásticos, que sabem do nosso trabalho com a pele de tilápia em queimaduras. Verificamos imediatamente nosso estoque e vimos que tínhamos a disponibilidade para doar 400 peles, o que equivale a 40 mil centímetros quadrados.

Quanto ao processo de doação, não depende de nós, e sim das autoridades brasileiras e libanesas autorizarem os trâmites burocráticos. O que podemos dizer é que nos prontificamos a doar e estamos no aguardo para que isso possa ser feito o mais rápido possível para ajudar no tratamento às vítimas.

Quantas pessoas essa quantidade de pele poderia ajudar?

Isso depende muito da condição do paciente, da extensão e profundidade da queimadura, da gravidade em geral. Mas podemos dizer que essa quantidade ajudaria entre 50 a 100 pessoas.

A pele de tilápia é aplicada como um curativo sobre queimaduras - Divulgação - Divulgação
A pele de tilápia é aplicada como um curativo sobre queimaduras
Imagem: Divulgação

Nas queimaduras, a pele da tilápia é usada como um curativo, certo? Como é esse processo de cicatrização?

A pele da tilápia é muito mais eficiente do que um curativo feito com pomada, por exemplo. Aqui no Brasil usamos a sulfadiazina de prata, que é aplicada nas queimaduras com o uso de gazes. Esse curativo precisa ser refeito diariamente, o que provoca dores no paciente e muitas vezes é necessário o uso de anestésico, o que gera um custo ainda maior ao tratamento.

Já o "curativo", digamos assim, com a pele de tilápia tem efeito de cicatrização mais rápido e não necessita de tantas "trocas", já que o colágeno interage com a ferida da queimadura facilitando o processo de cicatrização. E, como a pele da tilápia adere completamente à área queimada, isso evita a contaminação externa e a perda de líquido e proteína, que desidrata o paciente. Por isso não é necessário a troca diária do curativo, o que diminui as dores e o custo do tratamento.

E quanto tempo a pele de tilápia leva para a cicatrização?

A pele da tilápia é usada em queimaduras a partir de segundo grau. Em casos de segundo grau superficial, ela fica até 12 dias para acelerar o processo de cicatrização. Em uma queimadura de segundo grau profundo, ela fica em torno de 18 dias. E na queimadura de terceiro grau, ela fica até que o paciente tenha pele dele disponível. Nessas queimaduras mais graves, a pele de tilápia precisa ser trocada a cada cinco a sete dias, o que já é um período menor do que se fosse utilizado um curativo com pomada, por exemplo.

Em outros países costuma-se usar muito a pele de porco...

Sim, no resto do mundo se usa principalmente a pele de porco, mas também tem a pele de rã e a de cachorro. Mas a mais usada no mundo é a pele de porco. Inclusive, a pele da tilápia supera essa e todas as outras em relação à quantidade de colágeno e resistência. Fora que, por ser um animal aquático, tem menos risco de transmissão de doença do que os animais terrestres.

E existem outras pesquisas com o uso de peixes para queimaduras?

Olha, eu não conheço nenhuma pesquisa com peixe para queimaduras no mundo e desconheço qualquer outra pesquisa da pele da tilápia que não seja a nossa.

Vocês já aplicaram a pele de tilápia em mais de 350 pacientes, o que falta para que isso se torne um procedimento usado em hospitais do país, por exemplo?

Pesquisadores da Universidade Federal do Ceará durante trabalho com pele de tilápia em laboratório - Divulgação - Divulgação
Pesquisadores da Universidade Federal do Ceará durante trabalho com pele de tilápia em laboratório
Imagem: Divulgação

O registro da Anvisa. E isso não depende de nós, pesquisadores. São várias etapas a serem cumpridas. O que temos que deixar claro é que o uso da pele de tilápia em queimaduras já passou por diversos estudos clínicos e tem a sua eficácia totalmente comprovada. Ela só não é comercializada. E por quê? Novamente, porque isso depende do registro na Anvisa.

Esse registro envolve várias etapas, desde a escolha da indústria que vai comercializar, às normas e critérios de produção. Quando a indústria é definida, ela envia o registro para a Anvisa, que passa por um processo burocrático, e só depois acontece a liberação. Eu diria que todo esse processo até a liberação pode levar de dois a três anos.

De quanto tempo é o processo entre a retirada da pele da tilápia até a aplicação no paciente?

Em média, 20 dias. Nós recebemos a pele já retirada do peixe, da piscicultura que nos fornece. E aí começa a etapa de esterilização. Nesse momento, também é feita uma radiação por raios gama que tem como objetivo matar todos os vírus.

Se a doação de peles para o Líbano for liberada pelas autoridades responsáveis, vocês pensam em ter um estoque de emergência para outros casos de tragédia como essa?

A pandemia de Covid-19 no Brasil atrapalhou um pouco, mas desde o começo do ano decidimos preparar um lote de duas mil peles, o que equivale a 300 mil centímetros quadrados. Essas peles serão usadas exclusivamente em casos de grandes tragédias, no Brasil e no mundo. O armazenamento desse material pode durar até dois anos, e a liberação e transporte para o envio vai depender também do órgão de cada região, ou país, que solicitar.