Elefanta viaja da Argentina ao Brasil para encerrar 50 anos de confinamento
Os humanos enjaulados em suas casas por um vírus, e uma elefanta viajando pela estrada para viver um pouco de liberdade após mais de 50 anos presa em circos e zoológicos. A odisseia de Mara, saindo de Buenos Aires, percorrendo 2.700 quilômetros e chegando a uma reserva no Mato Grosso, parece uma daquelas fábulas que reservam uma lição de moral.
A ponte que une Argentina e Brasil em Foz do Iguaçu, fechada desde 20 de março devido à quarentena, só foi reaberta brevemente para ela passar, com a equipe responsável pelo translado. Eram dois motoristas, uma veterinária, dois administradores do zoológico portenho Ecoparque e uma fotógrafa para documentar essa jornada inusitada.
"Foi algo hiperemocionante. Só dois dias antes da viagem soubemos que teríamos autorização para passar a fronteira. Havia toda uma adrenalina, uma ansiedade para tudo dar certo. E, quando eu parava para pensar, falava: isso é muito louco, eu passeando com uma elefanta, enquanto o mundo todo está trancado." Em uma conversa com Ecoa, a fotógrafa Sofía López Mañán misturou emoções e reflexões sobre a experiência que viveu.
A viagem de Mara em plena pandemia explica muito do que a humanidade tem feito com o mundo não-humano, reduzindo a natureza, seus espaços vitais e confinando outros seres. O homem está experimentando agora o que é isso.
Sofía López Mañán, fotógrafa
Uma vida em exibição
A aventura de Mara é longa. Ela nasceu em cativeiro na Índia na década de 1960 e foi logo vendida para um zoológico de Hamburgo, na Alemanha. Depois se transferiu para Montevidéu, no Uruguai, para ser atração no "Circo África".
Em 1971, ela chegou à Argentina, onde fez parte de mais dois circos até ser encaminhada em 1995 para o tradicional Jardim Zoológico de Buenos Aires, inaugurado em 1888 com jaulas erguidas em construções ao estilo orientalista.
A partir de 2014, a administração privatizada do local foi acusada de falta de manutenção e alimentação dos animais, com várias mortes e até um habeas corpus decretado pela justiça local para libertar um orangotango.
Em 2016, o local foi retomado pelo Estado e rebatizado como Ecoparque, privilegiando a fauna argentina e em espaços mais amplos. Mara, como outros animais de grande porte, teria de ganhar novo destino.
Depois de quatro anos de tratativas, acertou-se sua vinda para o Santuário de Elefantes, criado na Chapada dos Guimarães em 2015. O diretor dessa reserva de mata em meio a plantações de algodão é o norte-americano Scott Blais, que abriu um santuário semelhante no Tennessee (EUA) em 1995. Ele estava em Foz do Iguaçu para receber Mara e o time argentino para completar o trajeto.
A elefanta sem fronteiras
Depois de meses de burocracia e exames, a migração de Mara ficou confirmada para o dia 30 de março. Dez dias antes, porém, o governo argentino decretou o fechamento de todas as fronteiras para deter o novo coronavírus. Tudo suspenso.
Mas novas negociações começaram, e em 9 de maio o comboio, com o animal de 2,5 toneladas e 15 humanos, partiu do bairro de Palermo, na capital do país vizinho. Na primeira noite na estrada, a equipe estacionou em um posto de gasolina e dormiu duas horas dentro dos carros, afinal, todos os hotéis permaneceram fechados durante a quarentena restrita no país - e as rodovias com controles policiais para permitir apenas viagens essenciais.
Os cuidadores mantinham Mara saciada com alfafa, maçã, cenoura, melão e melancia, além de mangueiradas de água em sua tromba. "Mara foi impecável em toda a viagem. Entrou e saiu do dispositivo de transporte com muita calma. Parecia mais tranquila que muito de nós", conta Sofía.
Na fronteira, parte da equipe ficou. Depois de seis horas revisando permissões e condições, a ponte internacional se abriu para a passagem de Mara. "Foi muito tenso, porque não pudemos passar com os alimentos nem com os cuidadores. Então chegando em solo brasileiro, ela precisava de uma assistência rápida", relata a fotógrafa. Responsável pelo translado de mais de 50 elefantes em sua carreira, Scott e três funcionários do santuário logo apareceram para a transição e a prosseguimento da viagem.
É preciso desumanizar
O périplo seguiu com um pernoite em Dourados (MS) e outro em Rondonópolis (MT). Após cinco dias e 2.700 quilômetros percorridos, Mara chegou ao vale que hospeda outras três elefantas asiáticas veteranas, vindas de fazendas de Minas Gerais e Sergipe. Rana, uma delas, virou amiga inseparável de Mara, comendo e dormindo juntas desde que se viram.
"Logo que chegou, Mara se assustava com o barulho dos pássaros da chapada. No segundo dia, ela soltou um bramido e percebeu que poderia se comunicar com as outras elefantas. É o chamado de manada. Rana respondeu, e não se separaram mais. Scott me disse que nunca viu Rana reagir assim. Era como se conhecessem de outro lugar", conta a fotógrafa. Nunca ouviu falar na expressão "memória de elefante"?
Mara pela primeira vez comeu grama do chão e pode se coçar em árvore de floresta. Também gostou de jogar terra vermelha em todo corpo para evitar parasitas. No santuário, ela recebe duas refeições, uma de manhã cedo e outra à noite, mas durante o dia se alimenta de pasto e frutas que encontra na vegetação local.
"Ela precisa se desumanizar, porque se habituou a pedir tudo para os humanos. Ela foi parando de fazer movimentos circulares com a cabeça, um cacoete da época de circo. Mas, ao mesmo tempo, não pode voltar para a selva porque não se habituaria. Seus pés, por exemplo, precisam ser cuidados porque não formou o casco dos animais selvagens", explica Sofía, que se especializou em coberturas e reportagens sobre meio ambiente.
A merecida aposentadoria
O santuário é uma espécie de retiro para a aposentadoria - não há planos de contar com jovens em idade reprodutiva por lá. O zoológico argentino vai destinar duas elefantas africanas para lá quando a pandemia passar. Para tanto, o local mato-grossense vai reservar um vale para essa espécie. As asiáticas, mais dóceis, e as africanas, mais reativas, costumam não se dar bem.
"É uma semiliberdade, mas é a chance desses elefantes voltarem a ser elefantes", resume Sofía, que ficou quatro dias no santuário registrando a adaptação de Mara antes de tomar o caminho de volta para casa.
"Antes, você alimentar e limpar era tido como tratamento digno para esses animais aprisionados. Agora temos consciência que eles devem ficar em seus habitats." A Chapada dos Guimarães não é a Índia nem a África, mas o clima local é bastante parecido.
E, finalmente, Mara vai ficar longe dos olhares humanos, já que o santuário não recebe visitantes. "Acho que assistimos tanto desenho animado que desenvolvemos um tipo de 'síndrome da Branca de Neve'. É um culto personalista que nos mostra como salvadores de animais, agraciados quando eles se aproximam e se deixam tocar."
A fotógrafa não pretende fazer documentário com tantas imagens que fez de sua aventura. "A natureza deve ser deixada em paz. Acho que agora Mara está entre suas iguais e não precisa mais ser tratada como um indivíduo especial."
A viagem de Sofía contou com o apoio do fundo de emergência para jornalistas durante a pandemia da National Geographic Society. Por seu lado, o canal Nat Geo Wild está exibindo atualmente o documentário "Elefantes: Em Nome da Liberdade", que estreou em julho e mostra o resgate de uma elefanta na Tailândia e sua ida para um santuário. A história se repete.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.